quarta-feira, 29 de abril de 2020

#082 Registos soltos sobre o tempo e o espaço

Já perdi a conta exata aos dias que passaram.
Passaram, é passado, não se fala mais nessa perda. Já sei que o Universo não nos vai devolver estes dias que subtraímos a uma existência normal, entre convívios com amigos, abraços aos familiares, idas a restaurates, à praia, ao cinema, aos museus, a um bar, a um concerto ou a um espetáculo de artes performativas, de entre as muitas modalidades e opções que teríamos e que nos levariam a tomar uma decisão de seleção e prioritização.
Agora, nestes dias, qualquer evento "fora do cardápio" do confinamento, e do isolamento, e da distância social, e da proteção individual e coletiva, e da monitorização do chamado R0 - de cuja evolução todos ficámos, de repente, admiradores, além de nos considerarmos especialistas de Covid, como os treinadores de bancada o são em relação ao futebol - e da mania de acharmos que estamos a vencer e ao mesmo tempo com medo de sermos infetados.
Este tempo que perdemos neste período da história em que fomos forçados a travar o ritmo e a reinventar a nossa existência como pessoas e como profissionais, com novos hábitos que já não serão erradicados do nosso "novo normal", este tempo ficou lá para trás. Os 30 segundos que vamos viver a seguir serão passado daqui a terem transcorridos os mesmos 30 segundos. Serão, também eles, passado. 
Seria bom que pudéssemos ser compensados por este período de vida em suspenso, de permanência entre um limbo existência e o prenúncio de um purgatório, sendo o calvário este pesaroso pesadelo real do qual ainda não conseguimos acordar.
Os dias vão ficar, em breve, mais quentes. Vamos querer fazer o que antes fazíamos, sem atribuir a isso o valor que hoje conferimos à banalidade rotineira que exisia a.C.. Não, não é antes de Cristo, é antes de Covid.
Quando temos de sair de casa, para irmos satisfazer uma qualquer necessidade objetiva, todos nos observamos mutuamente. Vemos, imaginamos, tecemos considerações para nós. Vemos quem se protege e quem é mais negligente nesse cuidado - ou na falta dele. Há pessoas que, só para se armarem em fortes e mostrarem que nada temem (ou aparentemente nada temem), cometem a estupidez imprudente de desrespeitar as recomendações de proteção, sua e dos outros.
Os comportamentos cívicos sempre e foram  e serão matéria-prima para muitas teses e para procurar a sua compreensão. Mas não há muito para compreender. Infelizmente, nem para modificar, porque as pessoas serão sempre pessoas e não se muda a essência do ser humano assim por truque de magia, nem pela sabedoria livresca dos manuais de auto-ajuda e de conteúdos mais esotéricos.
Enquanto perco a conta aos dias que já passaram procuro não perder a lucidez sobre os objetivos de vida, num horizonte mais mediato. E continuo a sonhar e a projetar esses sonhos em materialidade futura, num processo de construção que se alimenta de esperança e entusiasmo.
É nisso que acredito, é isso que procuro praticar.
Mesmo que o Universo não me devolva nunca mais estes dias, o que me obriga a viver os vindouros com mais intensidade ainda.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

#081 Exaltação dos afetos

Hoje apetece-me escrever sobre a exaltação dos afetos que a situação pandémica do coronavirus me proporcionou.
Com a vertigem dos dias que antes corriam velozes e cheios de afazeres e prioridades, igualmente repletos de fatores de desatenção, sem darmos por isso estávamos a ver o filme da nossa vida com um tremendo viés, eivado de perspetiva unilateral e sempre a partir do nosso ponto, fixo, pouco movível e quase nada flexível.

Não estarei a traduzir a realidade de toda a Humanidade mas não deixará de ser verdade para muitos.
Esta paragem, este confinamento, este isolamento, esta ausência da vida frenética anterior, tudo isto e muito mais que não cabe aqui, trouxe-me (trouxe-nos?) uma diferente disponibilidade para sentir o pulsar da vida. Damos mais valor a pequenos-nadas que já cá estavam mas que apenas negligenciávamos porque assim consentíamos e até gostávamos que assim fosse, lá no fundo.
Por exemplo, o amor da pessoa ou das pessoas que nos amam e que nós amamos. Passamos a olhar para essas pessoas (ou essa pessoa) com um sentido de cuidar diferente, mais consciente de que somos o respaldo uns dos outros (ou um do outro). Os defeitos foram sublimados, as virtudes surgem agora prenhas de significado e significância.
E o que antes parecia ter a sua dose de irreverência e aventureirismo foi passando e já se perde na penumbra do ocaso dos dias da vida.
Muitas vezes quis "vestir a pele" dos outros, gostei de imaginar a vida dos outros, desejei até sentir a sua felicidade e, no meio de todo este turbilhão, terei dado por adquirida a felicidade e completude da vida dos outros. Errei muito e errei em grande. Não me orgulho de tudo o que fiz, nem me penitencio mais. Porque eu acreditava que aquilo em que acreditava era verdade. Acreditem. Lutei pela minha felicidade cobiçando a que imaginava existir na vida dos outros.
E, no entanto, ela pode ter estado sempre aqui. E agora sei que estava e ei-la, imponente que surge, majestática que se impõe.

Se não sabemos quem somos e não sabemos estar em paz connosco, com os nossos defeitos, com as nossas imperfeições, com as nossas frustrações e sucessos também, bem como com as pessoas que nos fazem sentir bem e nos dão o melhor que têm, então nunca saberemos encontrar o nosso caminho de felicidade. Nem sozinhos, nem com mais ninguém.
Dei por mim a pensar em tudo isto nestes dias. E acabei a sentir, com profunda consciência do que tenho, do que sou, do que quero e do espero viver, que tenho a felicidade de ter a meu lado a pessoa mais extraordinária que existe. Tenho mais pessoas extraordinárias na minha vida. E tenho também sabido expelir dela personalidades toxicas. E sou privilegiado por também ter sido brindado com filhos sábios, amigos e compreensivos, e ainda família e amigos que gostam de mim como sou, mesmo que não compreendam tudo. E não têm de comprender tudo, não têm de aceitar tudo, como não têm ou não devem lutar contra tudo o que são as minhas crenças, convicções, certezas, apostas e expetativas. Basta que me respeitem para que também eu os possa respeitar.
E porque no meio de tudo isto me apetece amar ainda com mais intensidade, num registo de cada vez mais serenidade e mansidão sobre a sofreguidão com que antes absorvia tudo o que sentisse poder ser novo e giro e arriscado, e até ridículo e esdrúxulo e patético, assim irei fazer.
Quero fazer o caminho que falta percorrer até ao final lado a lado contigo. Com a nossa graça, a nossa cumplicidade, mas também com os nossos defeitos e imperfeições, porque só assim faz sentido.
A ti fica o meu compromisso: amo-te ainda mais. Amo-te ainda melhor. Amo-te ainda mais além.

domingo, 5 de abril de 2020

#080 O mundo como eu o quero ver, pós-coronavirus

Uma folha em branco, um desafio. Começo sempre por uma folha em branco. Olho para ela e a sua brancura desafia-me, pela odisseia do que me espera - em parte - e pela pureza do espaço branco em frente - a outra parte.
Hoje em dia a página de papel foi substituída por uma outra, do computador, que replica a primeira, mantendo a mesma brancura.
Esta cândida existência vazia, branca, é a mesma que me relata e recorda que, outrora, fomos todos puros, imaculados, limpos, inocentes. E que teremos começado a deixar de o ser no exato momento em que contactámos com o mundo exterior, ao qual chegámos sem que tal tenha sido uma escolha nossa. Mas aceitámos essa condição e lá nos fomos criando e interagindo uns com os outros e com a sociedade, que nos formatou e que muito pouco, cada um de nós, sozinho, conseguiu mudar.
Foi com a virgindade de atitude e ética dos valores que, sem sabermos, nas fases iniciais da nossa vida fomos formatando a nossa caminhada inicial na vida, contrastando agora com o peso do alcatrão que os nossos pés já percorreram e com a voragem dos afetos que comercializámos no "mercado dos amores".
Podemos voltar atrás? Não!
Devemos ansiar que o futuro chegue depressa? Julgo que não, ou não tenho a certeza. Nesta altura de pandemia de coronavírus, que transformou o planeta num pandemónio, ansiar demasiado depressa pelo futuro é também, sem o querermos de modo consciente, caminhar mais depressa para o nosso fim, mesmo que superemos incólumes este momento difícil.
O modelo de sociedade em que nascemos e crescemos foi alvo de um terramoto. Há quem fale em tsunami mas este surge depois de um terramoto lá longe, que afeta a estabilidade das placas fundacionais do planeta. E assim foi e é com o momento atual.
Num ensaio estonteantemente lúcido Jorge Almeida Fernandes escrevia ontem no jornal "Público" que "as pandemias raramente mudam o curso da História. Aceleram e revelam tendências que já estavam em curso, aberta ou subterraneamente".
E, recorrendo ainda a Gideon Lichfield, importa fazer um sublinhado de que concordo com o mesmo quando este refere que "a maior parte de nós ainda não terá compreendido, mas depressa o fará, que as coisas não voltarão a ser normais após algumas semanas ou até alguns meses. E algumas coisas jamais o voltarão a ser".
O que está em causa é um desafio civilizacional que não antevimos, não desejámos e ao qual ainda não sabemos como vamos fazer o ajustamento. A Humanidade sempre se ajustou após as grandes crises e os grandes desafios. Depois de apuradas as "war casualties" o mundo seguirá o seu novo rumo e um "novo normal" irá impor-se, majestático, nas nossas vidas. Há quase 20 anos, depois do 11 de Setembro, o mundo mudou um pouco. Por exemplo, estranhámos as novas regras de circulação aérea e os procedimentos mais rígidos de fiscalização nos aeroportos. Hoje isso é o "novo normal". Com uma magnitude seguramente superior, muito do que fazíamos até há um mês atrás mudou.
Como refere Yuval Noah Harari, num artigo publicado no Finantial Times e que a revista "E" do Expresso traduziu este fim de semana, "a Humanidade está neste momento a enfrentar uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões que as pessoas e os Governos tomarem  nas próximas semanas vão provavelmente moldar o mundo durante anos. Moldarão não só os nossos sistemas de saúde mas também a economia, a política e a cultura. Devemos agir rápida e decisivamente". No registo impactante que lhe conhecemos, revelado pela leitura da sua obra de atenta e rigorosa análise sociológica Harari vai mais longe e atreve-se a antever que "muitas medidas de emergência a curto prazo tornar-se-ão um aspeto da vida. Essa é a natureza das emergências. Aceleram processos históricos. Decisões que em épocas normais poderiam levar anos de deliberação são aprovadas em algumas horas".
Não tenho, pessoalmente, muitas dúvidas, de que assim será. Na reorganização da forma de trabalhar, dos sistemas de ensino, na partilha de informação - agora voluntária mas com riscos de nos estarmos a entregar ao controlo total por via dos smartphones e computadores e biometria e algoritmos preditivos e outras coisas que ainda não sabemos como serão mas que aí virão - sobre dados pessoais para nos ajudar na saúde e na doença, na organização dos processos de produção industrial, na forma como acedemos a atos culturais e eventos desportivos ou lúdicos, em tudo isso - e muito mais! - o mundo vai mudar e essa mudança não decorre de qualquer processo de transformação ou reforma empreendida pelos governos e sufragada nas urnas. Decorre porque estamos em emergência, porque há medo, porque queremos vencer esta ameaça e outras que - não tenho disso dúvida - no futuro nos surgirão.
Há uns anos recordo-me de haver uma luta contra o projeto Echelon e o medo do Big Brother que nos iria vigiar. Ao pé do que está a suceder isso era uma brincadeira de meninos.
Por outro lado, é também o tempo de a maioria dos povos e países do Mundo exigir que os focos de novas epidemias e novos vírus e ameaças biológicas parem de emergir na mesma geografia, por razões já identificadas e que não se compadecem com o sentido de responsabilidade coletivo que a Humanidade merece. E assegurar que essa mudança de comportamento cultural, neste caso com origem na China e nos mercados de animais selvagens vivos, deixe de ser possível.
Se há uma "coisa boa" que o novo coronavírus trouxe foi o momento de pausa para reflexão enquanto a ação não surge ou surge tímida e lentamente. Recebemos recomendações, orientações, umas mais rigorosas, outras menos, por vezes até contraditórias (a questão do uso versus não uso generalizado de máscaras, por exemplo) mas, no fundo, recebemos um convite a uma mudança de paradigma na civilização, um convite a uma nova forma de cidadania, um pedido a um regresso à pureza dos afetos e à nostalgia com que abraçávamos e beijávamos, sem medo nem real valor, aqueles que nos são mais importantes e mais falta fazem nas nossas vidas.
A emergência de novos padrões de comportamento virá com as novas regras de vivência em comunidade, associadas ainda a novas formas de solidariedade global, de rompimento com alguns processos de isolamento nacionalista, porventura até de uma nova forma regulação da multiculturalidade, onde desejo que seja possível caminhar no sentido da multidiversidade, no esbatimento de diferenças étnicas, religiosas e culturais e da generosidade e partilha como acontecia quando tudo estava nos primórdios da civilização humana.
Naturalmente, sempre haverá egoísmo, competição, disputa, inveja e fenómenos contrários ao caminho que a maioria vai desenhar ou aceitar como inevitável, após mais esta crise. Esses são também comportamentos inerentes à condição humana, eivada de bons propósitos mas também dos mais pérfidos atos de ignomínia e ultrajante degradação moral e ética.
Pessoalmente, quero acreditar que a Humanidade vai poder fazer um "reset" do caminho de auto-destruição inevitável em que se encontrava e ser capaz de se reerguer.
Como, quando e com quantos, isso é que ainda não sabemos...