quarta-feira, 27 de julho de 2022

#91 Meço as palavras que digo, não meço os sonhos que tenho

Meço as palavras, meço o que digo, meço o que te digo. Não meço os sonhos. Os sonhos que eu sonho, a dormir ou acordado, são sonhos ilimitados, incontidos, repletos de vida, de magia, de mistério e ambição. É esta vida imensa, intensa, fervilhante e com uma vasta paleta de cores, a vida que convida a viver em torrentes incontidas de episódios reais que brotam como lava incandescente rumo ao mar.

Meço as palavras antes que me traiam e revelem o que não quero, o que não posso, o que não devo, antes que essas malditas saiam e me denunciem. Tento ser comedido para não te assustar, seja por excesso, seja por defeito de palavras ditas ou não ditas, quer sejam palavras benditas ou malditas. Sei, tenho a convicção firme e sustentada, que se fundam no amor, no desejo, no querer, na generosidade, no procurar da perfeição. Mas são apenas palavras e se não forem bem escolhidas e bem ditas, sobretudo com ações concretas correspondentes ao seu conteúdo e forma, até podem ser bonitas mal soam mal e serão apenas palavras bem conjugadas em frases alinhadas, mas pertencentes a um qualquer enredo de ficção, divergente da realidade sonhada. As palavras têm poder e podem determinar o futuro, por que uma vez saídas pela boca já não podem ser apagadas, nem devolvidas à procedência, ao contrário do que sucede na narrativa escrita em que tantas vezes as apagamos ou refraseamos. A oralidade não permite devolver palavras ouvidas ao interior da pessoa que as proferiu jamais poderão ser eliminadas do espaço que ocuparam, no tempo em que ocorreram, pelas pessoas que as proferiram. Para o bem e para o mal.


Meço as palavras, mas nunca os sonhos. Porque os sonhos são desmedidos, por vezes repetidos, outras vezes variações, outras ainda aditamentos ou subtrações, ou até objeto de novo desfecho final. Os sonhos são a arma letal com que derroto as angústias e incertezas de uma vida que nem me sempre sorriu e nem sempre me brindou com boa fortuna – ainda que me considere afortunado por tudo o que vivi, conquistei, adquiri, dei ou partilhei. Mas agora sim, agora é que vai. Tem tudo para correr bem. Tem tudo e este tudo foi feito de pequenos nadas, de infortúnios e de glória, de sorrisos intervalados por lágrimas, por avalanches de experiências pontuadas com vazios de nada, de apenas existência sem vivência.

Relembro, porque assim quero, sobretudo os bons tempos, procurando relativizar as palavras ditas em ambos os sentidos que magoaram ambos e criaram cisões temporárias no alinhamento das vontades. Relembro, porque assim decido, sobretudo os momentos de glória, de preenchimento, de plenitude, de coesão, de palavras ditas embrulhadas em atos mágicos de afeto, dádiva e generosidade. Relembro os tempos do primeiro conhecimento e da magia que surgia do nada, numa inocência inesperada revivida em tempos em que já todas as inocências se tinham perdido – assim pensava eu e quão enganado estava...

Eram os tempos em que em nós o sonho tudo permitia.

Sei – sabemos – que o caminho pela frente não será todo um tapete acolchoado com pétalas de rosas perfumadas. Haverá pedras no caminho, seremos brindados com cruzamentos e bifurcações, gente na borda da estrada a atentar a paz e a oferecer a passagem para o Reino dos Céus e o Paraíso Divino, sei ainda que haverá arrufos e amuos, incompreensões e reconciliações, mas quero focar-me apenas nos momentos de partilha e cumplicidade, lealdade e solidariedade, verdade e compromisso, felicidade e aceitação, apoio e afetos. Sempre com palavras ditas para consolidar o que, estando implícito, pode também ficar explícito. Sem medo de dizer o que nos vai na alma, de nos despirmos de uniformes gastos e que não queríamos nunca ter mas acabámos por usar, sendo este o tempo de olharmos um para o outro sem as máscaras que a sociedade nos ensinou e estimulou a usar e sem os filtros que aprendemos a ter de usar para parecermos que somos o que a nossa essência não é.

Tudo farei – tudo faremos – para que em nós o bom prevaleça sempre sobre o mal. E, juntos, impediremos que, sorrateiramente, quase sem avisar, surjam quaisquer palavras aprisionadas, meias-histórias, anuição por omissão ou cansaço ou falta de vontade de sermos francos apenas, de manter longe de nós a ocultação do todo expondo apenas a parte que queremos que seja vista, sentida, apalpada, saboreada. Fugiremos do fosso cavado por tantos casais antes de nós e, jurando a pés juntos que nunca o fariam, acabam por cair nestas e noutras armadilhas que marcam a inexpugnável impossibilidade de o destino perfeito poder concretizar-se e acabam por remeter ambos os elementos a solilóquios dignos de tratados de psiquiatria, por vezes até forense. Seremos ambos soldados aguerridos do amor, no combate à resignação, à conformação, ao deixa-andar, à instalação das más rotinas (sim, há rotinas boas e nós sabemos bem como a elas recorrer, felizmente). A paixão deve conceder progressivamente o seu espaço ao amor pleno e sereno mas nunca desaparecer integralmente; muito menos deve ceder o seu espaço a qualquer forma de tolerância forçada. Também o desejo do corpo e da alma um do outro deverão poder manter-se – e assim pode ser – enquanto existir alegria, harmonia, compreensão e ambos quisermos manter-nos juntos e vivos, aceitando as naturais metamorfoses dos corpos que cedem à lei da gravidade, sem que nunca cedam ou concedam espaço à habituação orgânica, sem transcendência, à chamada caridade dos afetos e dependência por usucapião.

Meço as palavras e não escondo o entusiasmo, nem a euforia, antes afastando para longe todas as formas de tristeza e frustração que a distância trouxe e eram já rotina dos meus – dos nossos – dias.

Tenho sonhos e meço palavras até na sua verbalização. Mas não me inibo, antes me atrevo, a referir que nos anos que faltam pretendo dar mais e exigir menos. Porventura, até nada posso ou devo exigir, agora que tudo encontrou um caminho, ele mesmo alvo dos meus sonhos no passado e hoje presente confirmado. Hoje, nas palavras curtas em que pretendo ajustar contas com o passado, com o meu passado, com o teu passado, com o nosso passado, com o legado que ficou lá atrás, ajustar até contas com a nostalgia e com a memória vívida na pureza dos primeiros tempos (os benditos e os malditos), sei que esse tempo não voltará, porque o tempo nunca volta, por mais que seja apenas uma criação do Homem e não da Natureza, numa vã tentativa de compartimentar a nossa existência. Criámos a forma de medir e compartimentar, segmentar o tempo, e com isso demos ênfase ao conceito de finito, embora gostemos dizer tantas vezes a palavra infinito (amo-te infinito, vamos estar juntos no infinito, a nossa tolerância é infinita, entre outras utilizações inapropriadas e contrárias à finitude de tudo, até e sobretudo da nossa existência. Mas esta realidade é, posso atrever-me a afirmar, por vezes desafiaa pela infinitude dos sonhos que não meço e que mantenho em mim, a dormir ou acordado.

Meço as palavras. Assim tem de ser. Mas não meço o amor que te tenho. Muito menos os sonhos, que são infinitamente finitos, abertamente circunscritos, impossíveis por vezes de sintetizar nas palavras, seja por minha incapacidade, seja pelo defeito adquirido de as medir antes de as proferir.