segunda-feira, 30 de agosto de 2021

#090 Conto - parte 1


«Onde pertenço eu? A quem pertenço? Olho pela vidraça e vejo um imenso azul, um azul profundo que pende do céu e se funde com a parede horizontal de água que confere identidade a este local.

Estou aqui por opção, por decisão, por sentido último da consciência que me moveu para estas paragens, onde acredito estarem os alicerces da felicidade que tenho andado a construir, a dois, desde há vários anos. Crescemos e amadurecemos no plural, com erros de percurso – uns evitáveis, outros nem tanto – e com perdões e tolerância, com o espírito aberto para aprender e desenvolver cada vez mais a relação e construir, segurando a cada instante, o futuro que tão depressa se faz presente quanto constrói já memórias passadas para reter.

A vida é pródiga em surpresas, umas agradáveis, outras menos, mas todas elas são realidades que nos dão sempre ensinamentos, aprendizagens. O mundo está estranho, diferente daquilo que sempre conhecemos. As pessoas, os fenómenos sociais, as pandemias, as guerras, as incompreensões e intolerâncias, os extremismos, o abalar dos costumes e tradições, o desrespeito pelas memórias e pela natureza, o desprezo pelos velhos e pelos valores de família, a falta de fé e a crise das religiões, os corporativismos dedicados a traficância de favores e influências, as notícias nos media, a programação vazia de sentido das televisões, a mudança de hábitos saudáveis do convívio materialmente desinteressado, a ambiguidade dos protagonistas do nobre campo da política, maioritariamente gananciosos e dispostos a tudo fazer para se imporem, tudo isto me parece estar diferente da realidade que conhecemos há poucas décadas atrás. Só os locais parecem querer resistir a estas mudanças, mas sabemos que até os locais, cidades, campo, serra, mar, florestas, vida selvagem, amanheceres e ocasos dos dias, estão diferentes.

O futuro da Humanidade parece sombrio. E, contudo, sonhamos, projetamos desejos, criamos novos mundos dentro de nós e perseguimos, com maior ou menor determinação – o que depende da fibra, resiliência e entusiasmo individual de cada um de nós – os objetivos de vida, desta vida que é finita e na qual cada instante se faz passado e memória, conferindo uma primazia aclamada por todos ao aqui e agora?».

Pensava em tudo isto enquanto espreitava pela vidraça e, ao longe, contemplava o pôr-do-sol, dando pequenos e suaves goles naquele maduro do Douro, ansiando o regresso a casa de Tiago que, manhã cedo, saíra para ir trabalhar no hospital, em mais um turno de apoio a doentes oncológicos, numa missão nem sempre bem conseguida de levar esperança a quem a perdeu no decurso do diagnóstico que, tantas vezes, corresponde a uma sentença de morte. A vida de um doente oncológico é um pesadelo constante, a vida dos seus cuidadores informais um penhor de esperança e crença, o ritual dos profissionais de saúde um esforço de alento mascarado por detrás do qual se esconde a quase-certeza do desfecho final.

Há muitas formas de amar. Dar de nós, sem esperar receber, sem procurar a recompensa fútil e imediata dos “likes” das redes sociais, ser generoso ante as necessidades daqueles que mais precisam de apoio, é um grande gesto de altruísmo e de amor cheio. Podemos amar seres vivos – pessoas e animais, sobretudo – mas viver sem afetos é mesmo o maior aborrecimento e noção mais perfeita de uma vida vazia que pode existir. Cuidar, tratar, acarinhar, estimar, dar e ter noção de que é isso que faz sentido à nossa existência, é mesmo aquilo que faz a diferença entre uma vida com propósito e aquelas que, ainda que tendo sangue a correr pelo corpo, passam por este mundo e nunca terão a “vida eterna”, aquela que fica depois da nossa breve passagem pela Terra.

Por isso, o azul que via a partir da sua vidraça, o sentido da vida que reconhecia existir dentro de si, a vontade que tinha de abraçar o mundo e as coisas vivas, visíveis e invisíveis, num respeito quase dogmático no mundo que o transcendia, eram mesmo motivos de querer continuar a sua caminhada, sem se importar muito com o que os outros pensavam de si. Que importava que não tivesse uma vida catalogada como normal ou normalizada? Que importava que houvesse quem não entendesse que podia amar outrem sem que tivesse de existir nisso a definição escrita nos escritos do amor para ter descendência? Que importava que estivesse a desafiar as convenções feitas pelo Homem, em interpretações voluntárias da “voz de Deus”? Amava e era amado, e isso era necessário e suficiente para sentir que estava no caminho certo, independentemente do despojo pela fé que herdara da sua educação e pelas normais sociais onde tinha andado, direito e certo, nos carris do comboio da sua caminhada idealizada pela sua família?

Sabia que tinha bons princípios, valores morais e éticos, que também era mortal e falível, que nem sempre estivera certo e que em muitos momentos errara e cedera, nem sempre tendo agido adequadamente perante os outros e perante a sociedade. Mas estava disposto a prosseguir e cheio de certezas de que nada do que tinha feito, do que fazia, ou do que ainda viria a fazer, seriam suficientes para subtrair os méritos das suas convicções e das suas atitudes, ainda que consciente das suas imperfeições, limitações e ansiedades.