quarta-feira, 10 de abril de 2024

#098 O que nos faz sentir felizes, vivos e completos?

 A mim é viver, amar, conviver, partilhar, dar e receber, criar memórias, ter boas experiências, brincar, ler, escrever, ouvir música, estar em movimento, satisfazer a curiosidade intrépida do conhecimento, brincar… Mas tudo isso implica afetos e libertação de endorfina, serotonina, dopamina e ocitocina, esses fatores que desempenham vários papéis importantes no cérebro e no organismo.

Preciso de sorrir e de rir. Preciso de ficar triste e chorar. Preciso de deprimir e ressuscitar como a Fénix que idealizamos e sabemos ser apenas ficcionada.

Preciso de ingerir a vida em golfadas profundas e intensas, quase texturadas. Podemos tatear a vida, sentir o seu paladar, ingerir os aromas da vida, visualizar as cores e as nuances que traçam ténues fronteiras quase indizíveis, ouvir as vozes da natureza e acolher os silêncios do que não se descortina com nitidez.

Preciso de amar sem condições e sem restrições, sem medos e sem aprisionamento, sem culpa e sem vício de carácter. Preciso de amar, mas também preciso de me sentir amado. Não são meras palavras, estas pouco significam se forem apenas a conjugação de sons guturais sem expressão afetiva e consequência no dia a dia, em beijos, abraços, sorrisos cúmplices, cumplicidades criadas, intimidades exploradas e plena integralidade do ser.

Preciso de sentir que o amor que dou, tal como o que recebo, é gratuito, desinteressado, generoso, altruísta, inteiro, íntegro, autêntico.

Preciso de sentir que sou um ser irracional nos afetos e nas emoções, entre os intervalos em que a racionalidade exigida pela vida e pelos desafios do quotidiano se impõe. Mas ser irracional é importante, sobretudo nos afetos e nas emoções.

O amor é, por definição, irracional. Quando amamos alguém percebemos que o amor é mesmo irracional e que quanto amamos e nos apegamos a alguém que faça sentido na nossa vida, tudo o resto faz pouco ou nenhum sentido! O sentido da vida vem dos afetos, das emoções. Por isso não podemos racionalizar o amor e os afetos. Damos de nós, porque a dádiva também implica recebermos satisfação por fazermos a diferença na vida de alguém. O amor não se cobra, não se pede, não se mendiga. Apenas se sente… ou não será amor!

Porque amamos e sofremos no amor e, ainda assim, insistimos em resistir persistindo no domínio dos afetos, nós os crentes de que tal sentimento é irracional? Porque está na nossa natureza. Quem procura escamotear esta realidade e atribuir critérios de racionalidade aos afetos é porque não ama de verdade.

Amar é uma não-condição, uma in-condição, porque amar é incondicional e pode ser incontido, esmagador, tomando posse do nosso ser a ponto de o tornar vulnerável e precário.

O amor é tudo isso. E pode até ser mais, porque as palavras me faltam.

O amor é leve e tem peso, é desinteressado e mantém-nos aprisionados voluntariamente, é dia mas também se sente na noite…

Mas não é eterno. O amor precisa de ser cuidado, estimado, valorizado, prezado. Quem se esquecer de amar desta forma acaba por perder o amor que sobre si impendia, depois de perder a capacidade de amar.

Por isso sei hoje que o amor é uma construção permanente, inacabada, que nos deve desinquietar sempre, de modo a que não percamos a capacidade de amar e para que não sejamos sujeitos ao vazio que sentimos quando os atos da outra ou das outras pessoas (amor com pendor sexual, ou amor filial e por amigos) são vazios de afetos, racionais, racionalizados, ponderados, medidos, doseados, o que nos empurra para uma espiral negativa de circulo des-virtuoso que termina na mais pobre miséria do cemitério dos afetos perdidos, alguns irremediável e eternamente.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

#097 Mundo real, mundo de pessoas físicas e concretas

 As redes sociais a que recorremos (e a que eu também recorro) são largamente virtuais, embora igualmente sociais.

Porém, tenho como axioma que nada dispensa o contacto direto com as pessoas, lidar com as emoções, deixar a vida sacudir-nos com impulsos provenientes de carne e osso, abraçar as pessoas e sentir as expressões do corpo e do rosto, o calor humano, o timbre da voz, as subtilezas da linguagem não verbal, as pregas e expressões das gargalhadas ou outras emoções.

Fiel às vantagens que provêm do “ver, ouvir e pensar”, dei por mim a refletir estes dias, concluindo que o poder do contacto direto, presencial, entre pessoas, não encontra paralelo de comparabilidade face à tendência de virtualização das relações, neste muno de “modernidade líquida”, que Zygmund Bauman muito bem definiu. É que, para além de ser tudo muito fluido, dentro de água temos uma aparente sensação de leveza. Eu gosto muito de tudo isso, mas também aprecio a tangibilidade das coisas sólidas e concretas.

Testemunhei isso neste “carnaval dos idosos”. Percebi que as relações estabelecidas pelas pessoas de um e de outro bailinho são concretas, são dinâmicas mas são, acima de tudo, genuínas, e que os “idosos” que se misturam com os mais novos têm muito para (nos) dar; percebi ainda que já me identifico mais com a forma singela como se divertem e não possuem vaidades para o riso, o improviso, a aceitação da vida como ela é, da oportunidade dada pelo convívio com pessoas de diferentes gerações e distintas ocupações profissionais, passadas e presentes.

Foi um momento de aprendizagem sobre a vida e sobre as pessoas, sobre a certeza de que como tudo é provisório, transitório. E de como, nessa certeza, a partilha, a dádiva, a criação de memórias continua a prevalecer sobre o mundo virtual e virtualizado, com menos virtudes e ainda menos virtuosos que se possam apreciar.



No final do dia de ontem disse a uma das senhoras que conheci no bailinho que acompanhei e que me encantou com a sua humildade e dignidade, que “para o ano há mais, verdade?”, ao que a mesma respondeu, crua e objetivamente que “se ainda por cá andarmos e tivermos saúde, é muito provável que sim; mas a vida muda muito depressa e de um momento para o outro, pode já não ser possível”. Assim mesmo: nu e cru, autêntico e pragmático.

No dia em que se completavam 27 anos de ausência do meu pai, no dia em que os açorianos foram a votos (e eu também) para escolher o seu futuro a 4 anos, a vivência do “carnaval dos idosos” foi um bálsamo para a vida poder emocionar-me com a força que provém destas pessoas.

O Carnaval da Terceira é único. É uma montra e uma mostra do que é a vida na insularidade, de como tudo pode reinventar-se e de como a gargalhada espontânea assenta em sérias reflexões sobre a vida e sobre a forma como a comunidade se estrutura, sem recurso às tradicionais máscaras, mas alicerçadas em “assuntos” e temas musicais com letras adaptadas, roupagens coloridas, música, canto, memórias e estórias. Há muito trabalho, muito investimento, muito respeito pela qualidade do produto final entregue ao consumidor, que são as comunidades existentes numa ilha de enraizados costumes e tradições que fazem parte da idiossincrasia do povo açoriano em geral, e da ilha Terceira em particular.

As máscaras que usamos no Carnaval não são aquelas que usamos no nosso quotidiano, mas ainda assim, pelo menos as de Carnaval mostram a “persona” que queremos imitar ou usar para a celebração instantânea dos 3 dias de folia, disfarce, ou crítica até. Ao invés, na vida real e com as máscaras e roupagens com que nos escondemos verdadeiramente face à generalidade das pessoas que nos envolvem, fica mais difícil conhecer e reconhecer as pessoas por aquilo que elas, na sua essência e verdade, são.

Neste jogo do gato e do rato, é natural que eu também não me deixe expor na minha integral verdade perante a generalidade do mundo que me rodeia. Protegemo-nos, zelamos por nós, procuramos assegurar que nada deve interferir com a nossa vida, com a nossa identidade, com a nossa intimidade, ou com quem partilhamos os afetos mais profundos e verdadeiros. Mas não deixamos de viver a nossa verdade.

O que posso dizer é que sou feliz, sou estimado, sou até – como tenho reiteradamente escrito – um privilegiado. Sendo certo que não tenho tudo aquilo com que sonhei e que idealizei, nada me falta de essencial que obstaculize a felicidade, a serenidade, aquilo que os brasileiros resumem de “estar de boa com a vida”.

O Carnaval, sendo época de folia e até de alguns exageros, trouxe-me estas reflexões sobre a vida e sobre as pessoas.

Tocar, beijar, abraçar, ouvir e escutar, tudo isso é ouro imaterial que não devemos desperdiçar. E se isso implicar “menos virtual, mais real”, vamos a isso.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

#096 O canto da sereia - eleições para a AR 2024

Nos últimos dias, ao ver como a campanha eleitoral para a Assembleia da República vai, timidamente, começando, dei por mim a refletir. A campanha está a começar mal, num vazio de ideias e propostas efetivamente passadas para o lado dos eleitores, capazes de esclarecer, de trazer oferta de escolhas. Parece que estamos reféns de um modelo que não resolveu, não resolve e não resolverá os problemas de Portugal mas que, paradoxalmente, está a ser bem trabalhado e até aceite: melhor que o PS, só mesmo o (recauchutado PS) para resolver o que em 21 dos últimos 28 anos não conseguiu fazer: construir um Portugal de futuro, onde possa valer a pena viver, trabalhar e investir.

O teste do algodão é simples: basta perguntar aos jovens que saíram de Portugal na última década se ponderam regressar, continuando o país entregue aos mesmos políticos, às mesmas políticas e ao clima de promessas eternamente adiadas ao jeito de “agora é que é”. Quem saiu não vai encontrar impulso para regressar. Portugal está entregue a um país de pequeninos, com um vazio de líderes carismáticos, governado por um bando de profissionais que transitou das jotas para a vida dos adultos, com os vícios de sempre e as mentiras de sempre.


Mas isso os meus conhecidos ignoram ou pretendem ignorar.

É que, ao mesmo tempo que pensava no que acima escrevi, constatei também que alguns conhecidos, pertencentes à grande família a que chamo de “esquerda folclórica” revelaram algo que germinava como erva daninha, embora verde, viçosa, qual fluorescente. E têm vindo a conseguir vender erva daninha como girassóis ou mesmo gladíolos.

Alguns desses conhecidos que talvez nunca tenham lido um livro sobre ideias políticas, sobre a origem das diferentes ideologias, sobre os fundamentos e objetivos últimos das ideologias ou sobre a visão que as mesmas têm sobre aspetos e temas estruturantes da nossa sociedade e da construção da sociedade ideal, com primado para o Homem, revelaram um dogmatismo e uma intolerância que me deixou assustado. E com isso causam-me alguma irritação porque são como aqueles “músicos” que decoram os acordes mas desconhecem o solfejo, as claves, as notas musicais e a ciência que está por detrás das músicas que ouvimos e até sabemos assobiar.

Tenho lido coisas que não esperava, com recurso a coisas básicas. “Se és gay não podes votar na direita”, se “usaste o elevador social, deves isso à esquerda”, ou “a direita é contra os direitos das mulheres e em geral não gosta de pessoas”, ou mesmo ainda que “a direita quer privatizar a segurança social e o serviço nacional de saúde”. Isto tem ZERO de verdade, e zero de ideias políticas. E tem de ser combatido, com ideias e propostas que criem ressonância nos portugueses com algum nível de sensatez. Não é impossível, embora seja difícil, até mais porque com os anos de geringonça e PS sozinho, as pessoas se desabituaram de pensar, de questionar, de ver o mundo para além do pequeno quintal que é Portugal. E quando veem acham que “lá fora não é melhor”, nem que seja para usarem como auto-ajuda pela sua letargia em procurarem desbravar caminhos e mundos diferentes, para melhor, por comodidade, por procrastinação, por dormência cognitiva até. O mundo das redes sociais também contribuiu para esta asfixia intelectual e hoje mesmo li algures que os jovens contemporâneos raramente leem um livro, o que me leva a concluir que não se preocupam com as mesmas causas com que eu e as gerações antecessoras nos preocupávamos; e que isso levanta sinais de alerta e requer medidas para evitar o colapso da “crítica” que subjaz à condição humana – a crítica reflexiva, a crítica que leva a novas reflexões e a novas propostas e a novas respostas para os problemas de hoje e de amanhã. E é na dicotomia entre o “bom” e o “mau” que os mais ilustres pensadores, filólogos e filósofos concentraram os esforços da sua obra. A esquerda não é dona da moral pública. Nem a direita o pode permitir. De resto, e recorrendo a Friedrich Wilhelm Nietzsche (que a maioria apenas conhecerá de nome) todos temos a obrigação de promover a “busca da verdade de uma forma imparcial”.

A direita moderada portuguesa, com sólidos valores éticos, com grande pendor sobre as questões sociais, que procura o equilíbrio justo e complementar entre público e privado, que acredita na meritocracia, que combate a apropriação de bens e rendimentos apenas com base na cobiça, inveja e desprezo com a esquerda radical trata quem empreende (e que o PS mais à esquerda igualmente representa) não pode ter medo de dizer ao que vem. Deve apresentar as suas propostas, as suas ideias, deve evitar ir na ladoínha da comunicação social e da esquerda folclórica que quer discutir se vai ou não fazer coligação com o Chega; deve ter o poder de marcar a agenda, ignorar os ataques da esquerda nervosa e fazer crescer a sua base de apoio, com ideias, com propostas exequíveis, com metas atingíveis, com realismo, sem demagogia, sem ceder à beleza plástica de algumas das propostas que a esquerda sempre inventa e cria para fazer o seu “canto das sereias”, que Homero, na epopeia grega da Odisseia tão bem descreveu. É, portanto, uma estratégia milenar, a de criar logro para com isso obter vantagem sobre outrem.

Os anúncios de aumentos de salário mínimo devem ser compensados com as propostas para aumentar o salário médio e proporcionar melhores condições de vida para a classe média. As promessas de retirar da pobreza milhares de cidadãos deve ser complementada com as medidas que vão galvanizar o empreendedorismo e a valorização do mérito. A defesa da escola pública deve ser acompanhada da defesa do papel complementar a dar pelos prestadores do setor privado, social e cooperativo. E o mesmo na saúde.

A direita moderada deve ser capaz de se isolar do ruído das verdades absolutas da esquerda. Não deve ter medo de ter voz própria. Não deve deixar que a esquerda venda ilusoriamente que a solidariedade social e inter-geracional, o direito à habitação condigna, o serviço nacional de saúde (e o sistema de saúde onde os privados também têm lugar), a escola pública (com o apoio dos privados), a para com a segurança interna, a defesa nacional e a ambição internacional, são património comum dos portugueses – não são a quinta privada de nenhuma esquerda, mais ou menos reacionária.

A tarefa é difícil, mas é à direita moderada, na qual me incluo, que cabe o papel de combater, no respeito pelas regras da democracia, este abuso, esta usurpação, este confisco também ideológico, programático, societário, que a esquerda está a quer fazer.

Faço a minha confissão: alicercei a minha crença na social democracia ao ler Eduard Bernstein, político e teórico político alemão que viveu entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Acredito no impulso reformista e, não só rejeito, como combato a via revolucionária, nos termos em que Mark e Engels a teorizaram. E acredito que o reformismo na sociedade não é incompatível com o capitalismo regulado e o liberalismo económico. Talvez tenha sido esta a receita para que PSD e PS tenham trilhado caminhos diferentes após o 25 de abril. Talvez tenha sido que ditou a minha postura em sociedade. Nunca tive tudo o que desejei, mas também nunca me faltou o mínimo essencial para me realizar e ser feliz. Sou inconformado e trabalho para ser melhor pessoa e viver melhor, sem desejar que para eu ter outro qualquer homem ou mulher tenham de abrir mão do que é seu.

Dito isto, vou continuar a acompanhar a campanha e as posturas dos meus conhecidos. Mas pelo menos já fiz a minha autoscopia e vou ter o cuidado de lhes dar pouco crédito e defender mesmo aquilo em que acredito. Como sempre procurei fazer. E como sinto que é meu dever.