terça-feira, 24 de março de 2020

#077 Isolado para depois ser um homem mais Homem

Nestes dias o caos instalou-se. Todos - ou quase todos - vivemos no medo, na incerteza, no ajustamento a formas novas de viver. Isolados uns dos outros, ansiamos o momento de nos voltarmos a ver, abraçar, a olharmo-nos nos olhos, a sentir a presença da respiração daqueles que amamos.
As correntes de opinião, mesmo entre os cientistas e os políticos e os sociólogos e os comentadores dividem-se entre os que antevêm que isto vai piorar e ser um longo processo, e os outros, aqueles que acham que após meados de Abril, lentamente, a nossa vida vai retomar o seu curso.
Não sei. Talvez a verdade verdadeira esteja algures numa bissetriz equilibrada. Ninguém sabe ao certo.
Sem vacina, sem terapêutica específica já aprovada para esta indicação, não existe prevenção que a ciência consinta nem tratamento comprovadamente eficaz e, por via disso, vivemos tempos de experimentalismo, eivados do princípio de que todos desejamos fazer coisas positivas e ver coisas positivas serem feitas e aconteceram, venham elas de onde vierem, como que por um qualquer processo de surpresa, a que os devotos da fé cristã chamam "milagre".


Há mais de quatro semanas que não vejo a minha mãe. Comunicamos por SMS, já ela não tem saído de casa, em isolamento por determinação dos filhos, que ela até aceitou bem. Quando éramos novos e queríamos sair eles pediam que ficássemos em casa. Agora que somos nós os adultos ativos queremos exigir que os nossos mais velhos fiquem em casa. Esta ironia da vida só acontece porque vivemos tempos excecionais. E tempos de exceção requerem medidas de exceção.
Fico em casa, trabalho remotamente, leio livros que estavam em fila de espera, cozinho, escrevo, faço exercício fisico, vejo sérias que há muito queria ver, faço companhia à milha filha e ela a mim. Não me sobra tempo mas a rotina modificou-se. O meu filho está ausente do país, isolado noutra geografia - mas sempre junto do meu coração e no da mãe, por quem também sinto preocupação e cuidado.
Depois de tudo isto passar decidi que vou viver a minha vida ainda com mais plenitude, com mais determinação, com mais arrojo até. Dentro do equilíbrio que me caracteriza, estou certo, mas dando mais passos na construção da minha felicidade e da minha vida.
Não há tempo a perder. De um momento para o outro a vida pode escapar-se-nos por entre os dedos da mão como a areia da praia nos foge. Só que, se perder a areia da praia é uma desolação instantânea de leve da qual já não nos recodamos cinco segundos depois, neste caso...
O que nos impede de sermos felizes? Nós. Nós mesmos, a nossa personalidade, a nossa sociedade, a nossa perceção daquilo que a sociedade considera o melhor e mais padronizado comportamento para todos e para cada um, os nossos medos, as nossas inseguranças, as nossas normas, os nossos valores, os nossos estigmas, os nossos juízos, as nossas auto-determinações. Pois, tudo isso na primeira pessoa do singular e do coletivo, não é? Eu! Nós! Todos nós. O coletivo. A sociedade. E, também, o individual.
Quando o caos se instala há que saber encontrar um rumo para tudo isto, para o sentido da vida, para o propósito que nos move. Sem propósito nada vale a pena. E a nossa inércia impedir-nos-á de sermos felizes. E a vida terá passado, célere - porque ela passa mesmo depressa e porque ela não se repete, não se renova, não nos permite viver de novo e dizer "agora é que vai ser como eu quero, como eu sempre sonhei".
A ciência pode ajudar-nos a prevenir e debelar doenças e ameaças biológicas e tecnológicas. Mas do nosso "coração", dos afetos, das sensações, dos sentimentos, dessa dimensão psíquica e imaterial da essência do ser humano que transcende os demais seres vivos, pelo menos na dimensão que conhecemos, desse campo tratamos nós, já menos na primeira pessoa do plural, antes na primeira pessoa e na segunda pessoa do singular: eu, tu, eu e tu, tu e eu.
Já chorei, já me isolei em silêncios profundos, já ri e já abracei virtualmente familiares, amigos e colegas que me fazem falta por estes dias de pandemia e de desnorte.
Chorar é um ato de catarse que limpa a alma e renova a energia e o compromisso com a vida, considerando que não sejam lágrimas de depressão; no limite, de nostalgia, de saudade - essa dor boa que nos remete para a vontade de estar ou voltar a estar em harmonia com os nossos ou com as nossas memórias - ou mesmo de esperança de que, em breve, no espaço de meses ou poucos anos, teremos crescido com esta novidade social pandémica mundial e seremos melhores pessoas, mais solidários, tolerantes, inclusivos, menos dados a mesquinhices, calhandrices e julgamentos sumários de valor com o significado prárico de condenações em processo sumário popular.
No meio do caos luto por manter a lucidez do rumo. E espero ser capaz de demonstrar a resiliência certa para atravessar este período e voltar a viver em pleno, mais em pleno ainda, sem máscaras nem tabus, nem medos, nem ostentações, antes pugnando por ser humilde, discreto, humano, solidário, próximo, justo, cortês, delicado, íntegro, honrado, exemplo para alguns, discípulo permanente para outros mas, em resumo, uma pessoa mais Pessoa, um homem mais Homem.

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