quarta-feira, 10 de abril de 2024

#098 O que nos faz sentir felizes, vivos e completos?

 A mim é viver, amar, conviver, partilhar, dar e receber, criar memórias, ter boas experiências, brincar, ler, escrever, ouvir música, estar em movimento, satisfazer a curiosidade intrépida do conhecimento, brincar… Mas tudo isso implica afetos e libertação de endorfina, serotonina, dopamina e ocitocina, esses fatores que desempenham vários papéis importantes no cérebro e no organismo.

Preciso de sorrir e de rir. Preciso de ficar triste e chorar. Preciso de deprimir e ressuscitar como a Fénix que idealizamos e sabemos ser apenas ficcionada.

Preciso de ingerir a vida em golfadas profundas e intensas, quase texturadas. Podemos tatear a vida, sentir o seu paladar, ingerir os aromas da vida, visualizar as cores e as nuances que traçam ténues fronteiras quase indizíveis, ouvir as vozes da natureza e acolher os silêncios do que não se descortina com nitidez.

Preciso de amar sem condições e sem restrições, sem medos e sem aprisionamento, sem culpa e sem vício de carácter. Preciso de amar, mas também preciso de me sentir amado. Não são meras palavras, estas pouco significam se forem apenas a conjugação de sons guturais sem expressão afetiva e consequência no dia a dia, em beijos, abraços, sorrisos cúmplices, cumplicidades criadas, intimidades exploradas e plena integralidade do ser.

Preciso de sentir que o amor que dou, tal como o que recebo, é gratuito, desinteressado, generoso, altruísta, inteiro, íntegro, autêntico.

Preciso de sentir que sou um ser irracional nos afetos e nas emoções, entre os intervalos em que a racionalidade exigida pela vida e pelos desafios do quotidiano se impõe. Mas ser irracional é importante, sobretudo nos afetos e nas emoções.

O amor é, por definição, irracional. Quando amamos alguém percebemos que o amor é mesmo irracional e que quanto amamos e nos apegamos a alguém que faça sentido na nossa vida, tudo o resto faz pouco ou nenhum sentido! O sentido da vida vem dos afetos, das emoções. Por isso não podemos racionalizar o amor e os afetos. Damos de nós, porque a dádiva também implica recebermos satisfação por fazermos a diferença na vida de alguém. O amor não se cobra, não se pede, não se mendiga. Apenas se sente… ou não será amor!

Porque amamos e sofremos no amor e, ainda assim, insistimos em resistir persistindo no domínio dos afetos, nós os crentes de que tal sentimento é irracional? Porque está na nossa natureza. Quem procura escamotear esta realidade e atribuir critérios de racionalidade aos afetos é porque não ama de verdade.

Amar é uma não-condição, uma in-condição, porque amar é incondicional e pode ser incontido, esmagador, tomando posse do nosso ser a ponto de o tornar vulnerável e precário.

O amor é tudo isso. E pode até ser mais, porque as palavras me faltam.

O amor é leve e tem peso, é desinteressado e mantém-nos aprisionados voluntariamente, é dia mas também se sente na noite…

Mas não é eterno. O amor precisa de ser cuidado, estimado, valorizado, prezado. Quem se esquecer de amar desta forma acaba por perder o amor que sobre si impendia, depois de perder a capacidade de amar.

Por isso sei hoje que o amor é uma construção permanente, inacabada, que nos deve desinquietar sempre, de modo a que não percamos a capacidade de amar e para que não sejamos sujeitos ao vazio que sentimos quando os atos da outra ou das outras pessoas (amor com pendor sexual, ou amor filial e por amigos) são vazios de afetos, racionais, racionalizados, ponderados, medidos, doseados, o que nos empurra para uma espiral negativa de circulo des-virtuoso que termina na mais pobre miséria do cemitério dos afetos perdidos, alguns irremediável e eternamente.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

#097 Mundo real, mundo de pessoas físicas e concretas

 As redes sociais a que recorremos (e a que eu também recorro) são largamente virtuais, embora igualmente sociais.

Porém, tenho como axioma que nada dispensa o contacto direto com as pessoas, lidar com as emoções, deixar a vida sacudir-nos com impulsos provenientes de carne e osso, abraçar as pessoas e sentir as expressões do corpo e do rosto, o calor humano, o timbre da voz, as subtilezas da linguagem não verbal, as pregas e expressões das gargalhadas ou outras emoções.

Fiel às vantagens que provêm do “ver, ouvir e pensar”, dei por mim a refletir estes dias, concluindo que o poder do contacto direto, presencial, entre pessoas, não encontra paralelo de comparabilidade face à tendência de virtualização das relações, neste muno de “modernidade líquida”, que Zygmund Bauman muito bem definiu. É que, para além de ser tudo muito fluido, dentro de água temos uma aparente sensação de leveza. Eu gosto muito de tudo isso, mas também aprecio a tangibilidade das coisas sólidas e concretas.

Testemunhei isso neste “carnaval dos idosos”. Percebi que as relações estabelecidas pelas pessoas de um e de outro bailinho são concretas, são dinâmicas mas são, acima de tudo, genuínas, e que os “idosos” que se misturam com os mais novos têm muito para (nos) dar; percebi ainda que já me identifico mais com a forma singela como se divertem e não possuem vaidades para o riso, o improviso, a aceitação da vida como ela é, da oportunidade dada pelo convívio com pessoas de diferentes gerações e distintas ocupações profissionais, passadas e presentes.

Foi um momento de aprendizagem sobre a vida e sobre as pessoas, sobre a certeza de que como tudo é provisório, transitório. E de como, nessa certeza, a partilha, a dádiva, a criação de memórias continua a prevalecer sobre o mundo virtual e virtualizado, com menos virtudes e ainda menos virtuosos que se possam apreciar.



No final do dia de ontem disse a uma das senhoras que conheci no bailinho que acompanhei e que me encantou com a sua humildade e dignidade, que “para o ano há mais, verdade?”, ao que a mesma respondeu, crua e objetivamente que “se ainda por cá andarmos e tivermos saúde, é muito provável que sim; mas a vida muda muito depressa e de um momento para o outro, pode já não ser possível”. Assim mesmo: nu e cru, autêntico e pragmático.

No dia em que se completavam 27 anos de ausência do meu pai, no dia em que os açorianos foram a votos (e eu também) para escolher o seu futuro a 4 anos, a vivência do “carnaval dos idosos” foi um bálsamo para a vida poder emocionar-me com a força que provém destas pessoas.

O Carnaval da Terceira é único. É uma montra e uma mostra do que é a vida na insularidade, de como tudo pode reinventar-se e de como a gargalhada espontânea assenta em sérias reflexões sobre a vida e sobre a forma como a comunidade se estrutura, sem recurso às tradicionais máscaras, mas alicerçadas em “assuntos” e temas musicais com letras adaptadas, roupagens coloridas, música, canto, memórias e estórias. Há muito trabalho, muito investimento, muito respeito pela qualidade do produto final entregue ao consumidor, que são as comunidades existentes numa ilha de enraizados costumes e tradições que fazem parte da idiossincrasia do povo açoriano em geral, e da ilha Terceira em particular.

As máscaras que usamos no Carnaval não são aquelas que usamos no nosso quotidiano, mas ainda assim, pelo menos as de Carnaval mostram a “persona” que queremos imitar ou usar para a celebração instantânea dos 3 dias de folia, disfarce, ou crítica até. Ao invés, na vida real e com as máscaras e roupagens com que nos escondemos verdadeiramente face à generalidade das pessoas que nos envolvem, fica mais difícil conhecer e reconhecer as pessoas por aquilo que elas, na sua essência e verdade, são.

Neste jogo do gato e do rato, é natural que eu também não me deixe expor na minha integral verdade perante a generalidade do mundo que me rodeia. Protegemo-nos, zelamos por nós, procuramos assegurar que nada deve interferir com a nossa vida, com a nossa identidade, com a nossa intimidade, ou com quem partilhamos os afetos mais profundos e verdadeiros. Mas não deixamos de viver a nossa verdade.

O que posso dizer é que sou feliz, sou estimado, sou até – como tenho reiteradamente escrito – um privilegiado. Sendo certo que não tenho tudo aquilo com que sonhei e que idealizei, nada me falta de essencial que obstaculize a felicidade, a serenidade, aquilo que os brasileiros resumem de “estar de boa com a vida”.

O Carnaval, sendo época de folia e até de alguns exageros, trouxe-me estas reflexões sobre a vida e sobre as pessoas.

Tocar, beijar, abraçar, ouvir e escutar, tudo isso é ouro imaterial que não devemos desperdiçar. E se isso implicar “menos virtual, mais real”, vamos a isso.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

#096 O canto da sereia - eleições para a AR 2024

Nos últimos dias, ao ver como a campanha eleitoral para a Assembleia da República vai, timidamente, começando, dei por mim a refletir. A campanha está a começar mal, num vazio de ideias e propostas efetivamente passadas para o lado dos eleitores, capazes de esclarecer, de trazer oferta de escolhas. Parece que estamos reféns de um modelo que não resolveu, não resolve e não resolverá os problemas de Portugal mas que, paradoxalmente, está a ser bem trabalhado e até aceite: melhor que o PS, só mesmo o (recauchutado PS) para resolver o que em 21 dos últimos 28 anos não conseguiu fazer: construir um Portugal de futuro, onde possa valer a pena viver, trabalhar e investir.

O teste do algodão é simples: basta perguntar aos jovens que saíram de Portugal na última década se ponderam regressar, continuando o país entregue aos mesmos políticos, às mesmas políticas e ao clima de promessas eternamente adiadas ao jeito de “agora é que é”. Quem saiu não vai encontrar impulso para regressar. Portugal está entregue a um país de pequeninos, com um vazio de líderes carismáticos, governado por um bando de profissionais que transitou das jotas para a vida dos adultos, com os vícios de sempre e as mentiras de sempre.


Mas isso os meus conhecidos ignoram ou pretendem ignorar.

É que, ao mesmo tempo que pensava no que acima escrevi, constatei também que alguns conhecidos, pertencentes à grande família a que chamo de “esquerda folclórica” revelaram algo que germinava como erva daninha, embora verde, viçosa, qual fluorescente. E têm vindo a conseguir vender erva daninha como girassóis ou mesmo gladíolos.

Alguns desses conhecidos que talvez nunca tenham lido um livro sobre ideias políticas, sobre a origem das diferentes ideologias, sobre os fundamentos e objetivos últimos das ideologias ou sobre a visão que as mesmas têm sobre aspetos e temas estruturantes da nossa sociedade e da construção da sociedade ideal, com primado para o Homem, revelaram um dogmatismo e uma intolerância que me deixou assustado. E com isso causam-me alguma irritação porque são como aqueles “músicos” que decoram os acordes mas desconhecem o solfejo, as claves, as notas musicais e a ciência que está por detrás das músicas que ouvimos e até sabemos assobiar.

Tenho lido coisas que não esperava, com recurso a coisas básicas. “Se és gay não podes votar na direita”, se “usaste o elevador social, deves isso à esquerda”, ou “a direita é contra os direitos das mulheres e em geral não gosta de pessoas”, ou mesmo ainda que “a direita quer privatizar a segurança social e o serviço nacional de saúde”. Isto tem ZERO de verdade, e zero de ideias políticas. E tem de ser combatido, com ideias e propostas que criem ressonância nos portugueses com algum nível de sensatez. Não é impossível, embora seja difícil, até mais porque com os anos de geringonça e PS sozinho, as pessoas se desabituaram de pensar, de questionar, de ver o mundo para além do pequeno quintal que é Portugal. E quando veem acham que “lá fora não é melhor”, nem que seja para usarem como auto-ajuda pela sua letargia em procurarem desbravar caminhos e mundos diferentes, para melhor, por comodidade, por procrastinação, por dormência cognitiva até. O mundo das redes sociais também contribuiu para esta asfixia intelectual e hoje mesmo li algures que os jovens contemporâneos raramente leem um livro, o que me leva a concluir que não se preocupam com as mesmas causas com que eu e as gerações antecessoras nos preocupávamos; e que isso levanta sinais de alerta e requer medidas para evitar o colapso da “crítica” que subjaz à condição humana – a crítica reflexiva, a crítica que leva a novas reflexões e a novas propostas e a novas respostas para os problemas de hoje e de amanhã. E é na dicotomia entre o “bom” e o “mau” que os mais ilustres pensadores, filólogos e filósofos concentraram os esforços da sua obra. A esquerda não é dona da moral pública. Nem a direita o pode permitir. De resto, e recorrendo a Friedrich Wilhelm Nietzsche (que a maioria apenas conhecerá de nome) todos temos a obrigação de promover a “busca da verdade de uma forma imparcial”.

A direita moderada portuguesa, com sólidos valores éticos, com grande pendor sobre as questões sociais, que procura o equilíbrio justo e complementar entre público e privado, que acredita na meritocracia, que combate a apropriação de bens e rendimentos apenas com base na cobiça, inveja e desprezo com a esquerda radical trata quem empreende (e que o PS mais à esquerda igualmente representa) não pode ter medo de dizer ao que vem. Deve apresentar as suas propostas, as suas ideias, deve evitar ir na ladoínha da comunicação social e da esquerda folclórica que quer discutir se vai ou não fazer coligação com o Chega; deve ter o poder de marcar a agenda, ignorar os ataques da esquerda nervosa e fazer crescer a sua base de apoio, com ideias, com propostas exequíveis, com metas atingíveis, com realismo, sem demagogia, sem ceder à beleza plástica de algumas das propostas que a esquerda sempre inventa e cria para fazer o seu “canto das sereias”, que Homero, na epopeia grega da Odisseia tão bem descreveu. É, portanto, uma estratégia milenar, a de criar logro para com isso obter vantagem sobre outrem.

Os anúncios de aumentos de salário mínimo devem ser compensados com as propostas para aumentar o salário médio e proporcionar melhores condições de vida para a classe média. As promessas de retirar da pobreza milhares de cidadãos deve ser complementada com as medidas que vão galvanizar o empreendedorismo e a valorização do mérito. A defesa da escola pública deve ser acompanhada da defesa do papel complementar a dar pelos prestadores do setor privado, social e cooperativo. E o mesmo na saúde.

A direita moderada deve ser capaz de se isolar do ruído das verdades absolutas da esquerda. Não deve ter medo de ter voz própria. Não deve deixar que a esquerda venda ilusoriamente que a solidariedade social e inter-geracional, o direito à habitação condigna, o serviço nacional de saúde (e o sistema de saúde onde os privados também têm lugar), a escola pública (com o apoio dos privados), a para com a segurança interna, a defesa nacional e a ambição internacional, são património comum dos portugueses – não são a quinta privada de nenhuma esquerda, mais ou menos reacionária.

A tarefa é difícil, mas é à direita moderada, na qual me incluo, que cabe o papel de combater, no respeito pelas regras da democracia, este abuso, esta usurpação, este confisco também ideológico, programático, societário, que a esquerda está a quer fazer.

Faço a minha confissão: alicercei a minha crença na social democracia ao ler Eduard Bernstein, político e teórico político alemão que viveu entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Acredito no impulso reformista e, não só rejeito, como combato a via revolucionária, nos termos em que Mark e Engels a teorizaram. E acredito que o reformismo na sociedade não é incompatível com o capitalismo regulado e o liberalismo económico. Talvez tenha sido esta a receita para que PSD e PS tenham trilhado caminhos diferentes após o 25 de abril. Talvez tenha sido que ditou a minha postura em sociedade. Nunca tive tudo o que desejei, mas também nunca me faltou o mínimo essencial para me realizar e ser feliz. Sou inconformado e trabalho para ser melhor pessoa e viver melhor, sem desejar que para eu ter outro qualquer homem ou mulher tenham de abrir mão do que é seu.

Dito isto, vou continuar a acompanhar a campanha e as posturas dos meus conhecidos. Mas pelo menos já fiz a minha autoscopia e vou ter o cuidado de lhes dar pouco crédito e defender mesmo aquilo em que acredito. Como sempre procurei fazer. E como sinto que é meu dever.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

#095 Nostalgia de Outono

Poderia obrigar-me a sair da bolha, a ir ao encontro do desconforto que sempre surge quando saímos, por nossa iniciativa, ou forçados por outrem, do nosso espaço familiar e onde dominamos as variáveis que nos envolvem. A vida é aventura, desafio, risco, ousadia, paixão, inebriamento; mas é também dor e luto, sofrimento e angústia, lágrimas secas ou encharcadoras das rugas do rosto, cavadas pelo tempo e pelas marcas desse tempo em nós.

Poderia... porém, o estado de cansaço anímico vergava-me agora o corpo que, insolente, respondia com mais e mais desconforto, alimentando a ansiedade voraz que condicionava agora a existência, o ser, o respirar, o agir, o reagir, o lutar, o fazer.

A vida das pessoas passa por fases, não é sempre previsível nem integralmente gerível. Há fatores do destino que, pura e simplesmente, fazem as coisas acontecerem. E avançamos assim, em direção a pontos intermédios de balanço, de reflexão, por vezes até de contemplação e orgulho, outros havendo que, em sentido contrário, nos causam embaraço e arrependimento.

Trabalhar sem alegria, sem prazer no que fazemos, sem medição do retorno do nosso investimento, tudo isso faz do trabalho um logro, um foco de emergência de dor psíquica com consequências físicas.

É urgente sermos felizes, mais felizes, mais realizados, mais agradecidos pela vida que temos. Isso implica dispor de razões de celebração da felicidade, muito para além das esfera das relações pessoais, muito para lá do afeto e do amor que consagramos à pessoa que possa caminhar pela vida afora ao nosso lado.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

#094 Decisões

Todos tomamos decisões. Até mesmo não decidir é, em si mesmo, um ato de decisão. Mas eu não quero não-decidir, quero mesmo tomar decisões, porque sinto, antevejo, acredito convictamente que, uma vez tomadas, os momentos subsequentes me trarão serenidade, tranquilidade, apaziguamento.

Ser feliz no trabalho. Nem que isso implique mudar novamente. Quando trabalhamos com satisfação não nos cansamos nunca do nosso trabalho, do nosso fardo, do peso da responsabilidade que carregamos. Ao contrário, trabalhar sem alegria ou satisfação com o que fazemos rouba momentos de vida.

Ser feliz no amor. Já sou, mas quero ser mais. Tenho a felicidade de ter a meu lado uma pessoa excecional, imperfeita e, por isso mesmo, perfeita para mim, ser que se assume igualmente imperfeito e incapaz de algum dia se aproximar desse conceito esotérico. A pessoa com quem vivo é lúcida, com os pés assentes na terra, humilde, leal, honrada, capaz de extrair de mim o que tenho de melhor. Apoia-me e suporta-me (são coisas diferentes), ouve-me e escuta-me (são também coisas diferentes), ampara-me e segura-me (ibidem). Cresci num quadro de valores sociais em que nunca questionei poder ser diferente daquilo que eram as expetativas criadas sobre quem eu viria a ser e como iria viver em sociedade - era assim porque era assim. Mas eu não sou assim. Dizem que sou diferente. Eu acho que sou igual mas que decidi viver de modo diferente daquele que a maioria das pessoas vive. E por isso está na altura de deixar de me preocupar com o que os outros pensam. Devo respeitar quem pensa de forma diferente da minha apenas se essa pessoa respeitar a forma como sou, inteiro e imperfeito.

Ser feliz com os filhos. A obra mais perfeita em que tomei parte, a minha melhor co-criação até ao momento, que sei que jamais conseguirei repetir. A paternidade é uma missão para toda a vida, um compromisso saudável que abracei com energia, amor e de forma abnegada. Pelos meus filhos posso tentar virar o mundo do avesso, acender novas estrelas no firmamento, viajar pelo cosmos infinito e voltar. O amor mais desinteressado, o amor mais próximo da definição de incondicionalidade, advém da relação saudável entre pais e filhos, lúcidos, normais, imperfeitos, com sentido de risco e sem medo de dar, dar, dar, dar e dar. Porque na dádiva também se recebe - satisfação, plenitude, gratidão, reconhecimento, nirvana.



As decisões estão tomadas. O caminho feito até aqui teve curvas e contra-curvas, retas limpas e outras com armadilhas, já conduzi sem carta e já andei fora de mão, tive furos nos pneus e alguns acidentes leves. É hora de fazer a revisão da máquina, encher o depósito, carregar com o essencial, deixando o acessório para trás, engrenar a mudança de início de marcha, sinalizar com pisca que vou partir, tirar o pé do travão, acelerar, sentir a brisa no rosto e seguir caminho até ao fim da jornada.

Metade do caminho pode estar já feito mas há que acreditar que a parte mais bela da viagem ainda estará por chegar, por viver, por saborear, mesmo que seja entrecortada com momentos mais agrestes ou dolorosos. Esta é a minha fé, a minha convicção. Se sou um homem de fé? Tenho fé, sim. Tenho fé no futuro. Tenho fé para me alimentar de forças, na finitude da vida que não se tolhe no divino, antes é feita apesar dos dogmas e da fé dos outros, que não consigo encontrar em mim, nem explicar. Até na fé me sinto desigual.

A diversidade requer inclusão. A inclusão requer tolerância. A tolerância requer compreensão. A compreensão requer, por sua vez, alguma plausibilidade, coerência, sensatez, respeito e cortesia.

Há quem diga que isto também só é possível quando amadurecemos e ainda não perdemos a lucidez. Será?

sexta-feira, 17 de março de 2023

#93 Reflexão sobre o #92

 «A sua situação era imprecisa, indefinida, sem um vislumbre do que pudesse vir a suceder na semana seguinte, no mês imediato, nos anos vindouros. Ansiava por ficar, mas sabia que não seria fácil. Tudo o que o prendia – e não era pouco – se baseava nos afetos, no amor, na vida que tanto idealizara e que acabar por materializar-se. Sentia-se um privilegiado. E, no entanto, tinha noção plena de que o Homem nunca está completo, falta-lhe sempre qualquer coisa, mesmo que também ela seja indefinida, pois «a vida é o resultado das escolhas que fazemos» ou, como escrevia Ortega Y Gasset, «o homem é o ser e a sua circunstância», e sabemos, desde muito cedo na vida, que para termos algo temos de optar por não ter outra ou outras coisas - o chamado «custo de oportunidade».

Talvez, neste caso, fosse apenas a necessidade de demonstrar que ainda era cedo para mandar sossegar as ambições de carreira – como se as ambições, quaisquer que fossem, pudessem ser controladas. Mas não, as ambições são como sonhos em forma de quisto, que crescem e ocupam o seu espaço no nosso corpo, na nossa mente.

Tinha de arriscar e propor-se a algo mais, a cumprir mais uma etapa na sua vida, a poder preencher mais alguns espaços no baú das memórias com aquelas que ainda não tinha conseguido realizar e que um dia estariam ao lado das outras, umas mais gloriosas, outras mais tenebrosas, umas mais serenas, outras mais selvagens. Nada que colidisse com as suas escolhas de coração, de vida, de companhia para a vida. Nada disso. Mas perante a situação imprecisa sentia que tinha de fazer algo e que esse poder era seu, só seu, inalienável, insofismável e, numa certa medida, indomesticável. Como predador de desafios que era, sentiu que tinha chegado o momento de ser ele o dono da precisão e definição do seu futuro, pelo menos no lado profissional.

E se bem o pensou, melhor o fez.»

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

#92 Mudança de rumo

Olá blog.

Já não despejava aqui pensamentos e letras e palavras soltas e, por vezes, sem sentido, desde julho do ano passado.

Normalmente, quando não escrevemos poderia ser sinal de estar tudo bem.

Na verdade, não está tudo mal e a vida até seguiu um curso que não era expetável quando, há cerca de um ano, fui forçado a emigrar, rumando a um novo desafio, numa nova entidade empregadora, num novo ambiente, numa nova geografia. Foram tempos de desafio, de saída da zona de conforto, de crescimento, de adaptação, aos 53 anos de idade.

Se nunca é fácil mais difícil parece ser quando já começamos a pensar em desacelerar da criação de carreira, quando antevemos já que falta cerca de uma década - e 10 anos passam a voar - para podermos deixar de viver debaixo de preocupações, ansiedade, nervosismo, a tentar provar o nosso valor como profissionais, procurando que seja também visível a nossa dimensão humana, mais pessoal.

E, por via disso, hoje estou melhor. Mas continuo distante do meu habitat, estando confortavelmente apoiado nos afetos de quem me acompanha há quase 14 anos, num registo de serenidade e cumplicidade e lealdade e solidariedade e simplicidade e autenticidade que muita alegria me trazem.

Viver numa ilha é sempre um desafio.

Viver numa ilha e ter uma elevada responsabilidade profissional é um desafio ainda maior.

Em cima disso viver na opção pessoal em que decidi apostar para ser eu e ser feliz, é complexidade que se adiciona ao desafio.

Mas, até ver, estou a gostar e a aprender.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

#91 Meço as palavras que digo, não meço os sonhos que tenho

Meço as palavras, meço o que digo, meço o que te digo. Não meço os sonhos. Os sonhos que eu sonho, a dormir ou acordado, são sonhos ilimitados, incontidos, repletos de vida, de magia, de mistério e ambição. É esta vida imensa, intensa, fervilhante e com uma vasta paleta de cores, a vida que convida a viver em torrentes incontidas de episódios reais que brotam como lava incandescente rumo ao mar.

Meço as palavras antes que me traiam e revelem o que não quero, o que não posso, o que não devo, antes que essas malditas saiam e me denunciem. Tento ser comedido para não te assustar, seja por excesso, seja por defeito de palavras ditas ou não ditas, quer sejam palavras benditas ou malditas. Sei, tenho a convicção firme e sustentada, que se fundam no amor, no desejo, no querer, na generosidade, no procurar da perfeição. Mas são apenas palavras e se não forem bem escolhidas e bem ditas, sobretudo com ações concretas correspondentes ao seu conteúdo e forma, até podem ser bonitas mal soam mal e serão apenas palavras bem conjugadas em frases alinhadas, mas pertencentes a um qualquer enredo de ficção, divergente da realidade sonhada. As palavras têm poder e podem determinar o futuro, por que uma vez saídas pela boca já não podem ser apagadas, nem devolvidas à procedência, ao contrário do que sucede na narrativa escrita em que tantas vezes as apagamos ou refraseamos. A oralidade não permite devolver palavras ouvidas ao interior da pessoa que as proferiu jamais poderão ser eliminadas do espaço que ocuparam, no tempo em que ocorreram, pelas pessoas que as proferiram. Para o bem e para o mal.


Meço as palavras, mas nunca os sonhos. Porque os sonhos são desmedidos, por vezes repetidos, outras vezes variações, outras ainda aditamentos ou subtrações, ou até objeto de novo desfecho final. Os sonhos são a arma letal com que derroto as angústias e incertezas de uma vida que nem me sempre sorriu e nem sempre me brindou com boa fortuna – ainda que me considere afortunado por tudo o que vivi, conquistei, adquiri, dei ou partilhei. Mas agora sim, agora é que vai. Tem tudo para correr bem. Tem tudo e este tudo foi feito de pequenos nadas, de infortúnios e de glória, de sorrisos intervalados por lágrimas, por avalanches de experiências pontuadas com vazios de nada, de apenas existência sem vivência.

Relembro, porque assim quero, sobretudo os bons tempos, procurando relativizar as palavras ditas em ambos os sentidos que magoaram ambos e criaram cisões temporárias no alinhamento das vontades. Relembro, porque assim decido, sobretudo os momentos de glória, de preenchimento, de plenitude, de coesão, de palavras ditas embrulhadas em atos mágicos de afeto, dádiva e generosidade. Relembro os tempos do primeiro conhecimento e da magia que surgia do nada, numa inocência inesperada revivida em tempos em que já todas as inocências se tinham perdido – assim pensava eu e quão enganado estava...

Eram os tempos em que em nós o sonho tudo permitia.

Sei – sabemos – que o caminho pela frente não será todo um tapete acolchoado com pétalas de rosas perfumadas. Haverá pedras no caminho, seremos brindados com cruzamentos e bifurcações, gente na borda da estrada a atentar a paz e a oferecer a passagem para o Reino dos Céus e o Paraíso Divino, sei ainda que haverá arrufos e amuos, incompreensões e reconciliações, mas quero focar-me apenas nos momentos de partilha e cumplicidade, lealdade e solidariedade, verdade e compromisso, felicidade e aceitação, apoio e afetos. Sempre com palavras ditas para consolidar o que, estando implícito, pode também ficar explícito. Sem medo de dizer o que nos vai na alma, de nos despirmos de uniformes gastos e que não queríamos nunca ter mas acabámos por usar, sendo este o tempo de olharmos um para o outro sem as máscaras que a sociedade nos ensinou e estimulou a usar e sem os filtros que aprendemos a ter de usar para parecermos que somos o que a nossa essência não é.

Tudo farei – tudo faremos – para que em nós o bom prevaleça sempre sobre o mal. E, juntos, impediremos que, sorrateiramente, quase sem avisar, surjam quaisquer palavras aprisionadas, meias-histórias, anuição por omissão ou cansaço ou falta de vontade de sermos francos apenas, de manter longe de nós a ocultação do todo expondo apenas a parte que queremos que seja vista, sentida, apalpada, saboreada. Fugiremos do fosso cavado por tantos casais antes de nós e, jurando a pés juntos que nunca o fariam, acabam por cair nestas e noutras armadilhas que marcam a inexpugnável impossibilidade de o destino perfeito poder concretizar-se e acabam por remeter ambos os elementos a solilóquios dignos de tratados de psiquiatria, por vezes até forense. Seremos ambos soldados aguerridos do amor, no combate à resignação, à conformação, ao deixa-andar, à instalação das más rotinas (sim, há rotinas boas e nós sabemos bem como a elas recorrer, felizmente). A paixão deve conceder progressivamente o seu espaço ao amor pleno e sereno mas nunca desaparecer integralmente; muito menos deve ceder o seu espaço a qualquer forma de tolerância forçada. Também o desejo do corpo e da alma um do outro deverão poder manter-se – e assim pode ser – enquanto existir alegria, harmonia, compreensão e ambos quisermos manter-nos juntos e vivos, aceitando as naturais metamorfoses dos corpos que cedem à lei da gravidade, sem que nunca cedam ou concedam espaço à habituação orgânica, sem transcendência, à chamada caridade dos afetos e dependência por usucapião.

Meço as palavras e não escondo o entusiasmo, nem a euforia, antes afastando para longe todas as formas de tristeza e frustração que a distância trouxe e eram já rotina dos meus – dos nossos – dias.

Tenho sonhos e meço palavras até na sua verbalização. Mas não me inibo, antes me atrevo, a referir que nos anos que faltam pretendo dar mais e exigir menos. Porventura, até nada posso ou devo exigir, agora que tudo encontrou um caminho, ele mesmo alvo dos meus sonhos no passado e hoje presente confirmado. Hoje, nas palavras curtas em que pretendo ajustar contas com o passado, com o meu passado, com o teu passado, com o nosso passado, com o legado que ficou lá atrás, ajustar até contas com a nostalgia e com a memória vívida na pureza dos primeiros tempos (os benditos e os malditos), sei que esse tempo não voltará, porque o tempo nunca volta, por mais que seja apenas uma criação do Homem e não da Natureza, numa vã tentativa de compartimentar a nossa existência. Criámos a forma de medir e compartimentar, segmentar o tempo, e com isso demos ênfase ao conceito de finito, embora gostemos dizer tantas vezes a palavra infinito (amo-te infinito, vamos estar juntos no infinito, a nossa tolerância é infinita, entre outras utilizações inapropriadas e contrárias à finitude de tudo, até e sobretudo da nossa existência. Mas esta realidade é, posso atrever-me a afirmar, por vezes desafiaa pela infinitude dos sonhos que não meço e que mantenho em mim, a dormir ou acordado.

Meço as palavras. Assim tem de ser. Mas não meço o amor que te tenho. Muito menos os sonhos, que são infinitamente finitos, abertamente circunscritos, impossíveis por vezes de sintetizar nas palavras, seja por minha incapacidade, seja pelo defeito adquirido de as medir antes de as proferir.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

#090 Conto - parte 1


«Onde pertenço eu? A quem pertenço? Olho pela vidraça e vejo um imenso azul, um azul profundo que pende do céu e se funde com a parede horizontal de água que confere identidade a este local.

Estou aqui por opção, por decisão, por sentido último da consciência que me moveu para estas paragens, onde acredito estarem os alicerces da felicidade que tenho andado a construir, a dois, desde há vários anos. Crescemos e amadurecemos no plural, com erros de percurso – uns evitáveis, outros nem tanto – e com perdões e tolerância, com o espírito aberto para aprender e desenvolver cada vez mais a relação e construir, segurando a cada instante, o futuro que tão depressa se faz presente quanto constrói já memórias passadas para reter.

A vida é pródiga em surpresas, umas agradáveis, outras menos, mas todas elas são realidades que nos dão sempre ensinamentos, aprendizagens. O mundo está estranho, diferente daquilo que sempre conhecemos. As pessoas, os fenómenos sociais, as pandemias, as guerras, as incompreensões e intolerâncias, os extremismos, o abalar dos costumes e tradições, o desrespeito pelas memórias e pela natureza, o desprezo pelos velhos e pelos valores de família, a falta de fé e a crise das religiões, os corporativismos dedicados a traficância de favores e influências, as notícias nos media, a programação vazia de sentido das televisões, a mudança de hábitos saudáveis do convívio materialmente desinteressado, a ambiguidade dos protagonistas do nobre campo da política, maioritariamente gananciosos e dispostos a tudo fazer para se imporem, tudo isto me parece estar diferente da realidade que conhecemos há poucas décadas atrás. Só os locais parecem querer resistir a estas mudanças, mas sabemos que até os locais, cidades, campo, serra, mar, florestas, vida selvagem, amanheceres e ocasos dos dias, estão diferentes.

O futuro da Humanidade parece sombrio. E, contudo, sonhamos, projetamos desejos, criamos novos mundos dentro de nós e perseguimos, com maior ou menor determinação – o que depende da fibra, resiliência e entusiasmo individual de cada um de nós – os objetivos de vida, desta vida que é finita e na qual cada instante se faz passado e memória, conferindo uma primazia aclamada por todos ao aqui e agora?».

Pensava em tudo isto enquanto espreitava pela vidraça e, ao longe, contemplava o pôr-do-sol, dando pequenos e suaves goles naquele maduro do Douro, ansiando o regresso a casa de Tiago que, manhã cedo, saíra para ir trabalhar no hospital, em mais um turno de apoio a doentes oncológicos, numa missão nem sempre bem conseguida de levar esperança a quem a perdeu no decurso do diagnóstico que, tantas vezes, corresponde a uma sentença de morte. A vida de um doente oncológico é um pesadelo constante, a vida dos seus cuidadores informais um penhor de esperança e crença, o ritual dos profissionais de saúde um esforço de alento mascarado por detrás do qual se esconde a quase-certeza do desfecho final.

Há muitas formas de amar. Dar de nós, sem esperar receber, sem procurar a recompensa fútil e imediata dos “likes” das redes sociais, ser generoso ante as necessidades daqueles que mais precisam de apoio, é um grande gesto de altruísmo e de amor cheio. Podemos amar seres vivos – pessoas e animais, sobretudo – mas viver sem afetos é mesmo o maior aborrecimento e noção mais perfeita de uma vida vazia que pode existir. Cuidar, tratar, acarinhar, estimar, dar e ter noção de que é isso que faz sentido à nossa existência, é mesmo aquilo que faz a diferença entre uma vida com propósito e aquelas que, ainda que tendo sangue a correr pelo corpo, passam por este mundo e nunca terão a “vida eterna”, aquela que fica depois da nossa breve passagem pela Terra.

Por isso, o azul que via a partir da sua vidraça, o sentido da vida que reconhecia existir dentro de si, a vontade que tinha de abraçar o mundo e as coisas vivas, visíveis e invisíveis, num respeito quase dogmático no mundo que o transcendia, eram mesmo motivos de querer continuar a sua caminhada, sem se importar muito com o que os outros pensavam de si. Que importava que não tivesse uma vida catalogada como normal ou normalizada? Que importava que houvesse quem não entendesse que podia amar outrem sem que tivesse de existir nisso a definição escrita nos escritos do amor para ter descendência? Que importava que estivesse a desafiar as convenções feitas pelo Homem, em interpretações voluntárias da “voz de Deus”? Amava e era amado, e isso era necessário e suficiente para sentir que estava no caminho certo, independentemente do despojo pela fé que herdara da sua educação e pelas normais sociais onde tinha andado, direito e certo, nos carris do comboio da sua caminhada idealizada pela sua família?

Sabia que tinha bons princípios, valores morais e éticos, que também era mortal e falível, que nem sempre estivera certo e que em muitos momentos errara e cedera, nem sempre tendo agido adequadamente perante os outros e perante a sociedade. Mas estava disposto a prosseguir e cheio de certezas de que nada do que tinha feito, do que fazia, ou do que ainda viria a fazer, seriam suficientes para subtrair os méritos das suas convicções e das suas atitudes, ainda que consciente das suas imperfeições, limitações e ansiedades.

domingo, 10 de janeiro de 2021

#089 Escrita sem nexo em tempo de confinamento

 Voltamos a estar confinados por causa da Covid-19.

Um ano já passou e, sem darmos bem conta disso, mudamos. Somos hoje diferentes e não sei algum dia voltaremos exatamente ao que fomos até finais de 2019. Podemos ter saudades de beijos e abraços, sorrisos e cansaços, folia e até amassos, e isso não deixaremos de querer ter, de querer perseguir e possuir, de sonhar, desejar mais e melhores afetos, recuperar viagens não realizadas, experiências adiadas, vidas suspensas e palavras não ditas com a candura de quem as tem guardadas para melhor ocasião.

O que mudou foi a forma como hoje olhamos para a vida, para a alteração de comportamentos sociais, de padrões de comportamento e até na relação com o mundo profissional.

Esta existência engaiolada, esta forma de estarmos aprisionados e de voluntariamente a isso nos submetermos só é possível porque existe medo, respeito, desconhecimento, desconfiança e até uma certa impotência.


Poderíamos aproveitar para ler mais, ouvir boa música, escrever, ver filmes, estudar e amar mais as pessoas que nos rodeiam. E há quem o faça. Felizmente, existe essa lucidez e essa assertividade em jeito de auto-defesa.

Este escrito de hoje está uma treta, fraco, sem garra, sem profundidade, com pouco sal e suor, sensaborão, redondo. É o resultado da letargia que me invade e da tristeza em que me econtro, enquanto vou adiando decisões pessoais que, a serem tomadas, serão de rotura e novo impulso, novo espaço de desconforto até (re)encontrar o conforto que vem das banalização e das novas rotinas que nos aquietam e nos conferem acolhimento.

domingo, 3 de janeiro de 2021

#088 Saudade

Saudade...

Fruto do amor ausente, qualquer forma de amor e de amar. Um vazio que enche de nada o peito apertado pela ausência de quem nos faz falta. Esta sensação que também promove a proximidade desejada mas, não raras vezes, demorada - e até ansiada.

O sentimento. O vazio. A perda relativa. A distância. A impotência.

E, contudo, num processo criativo e imaginário, surge a proximidade sentida, o abraço torna-se um desejo quase real, surgem as lágrimas piedosas, suplicando os beijos e abraços adiados do "até breve" que pode ou não tardar, sente-se o instante tornado infinito, e inventa-se a conversa adiada olhos nos olhos até de madrugada, o demorarmo-nos na presença do outro antes que tudo acabe, a permanência, a pertença, a existência, a essência.

Um laço fundado nos afetos pode ser mais forte que o aço.

Isso é tão verdade nos espaços filiais, entre pais e filhos ou entre avós e netos.

A saudade não tem substituto nem concorrente. Nada substitui a saudade, aquele perto no peito cheio de vontade, aquele impulso para chorar com o sonho do reencontro, aquela vontade de derramar lágrimas de puro amor salgado na espera do doce novo momento juntos, aquela comoção que insuportavelmente nos faz suportar o adeus ou o até breve, a falta de ar que surge quando já mais nada existe para suspirar. Não há medicamento nem vacina eficazes para a saudade e nada pode ocupar o seu lugar.

Havemos de ter sempre saudades e havemos de saber chorar o vazio e a ausência. Porque isso nos conduz à certa esperança de que voltaremos a estar juntos, mais cedo do que tarde. Porque a saudade traduz o vínculo e o laço, que é mais forte que o aço.

Começa agora mais um período de grande saudade para mim e para nós. Volta depressa filho. Coração de pai (e mãe e avós e irmã) suspiram por ti, tanto quanto te apoiam e desejam sorte, sucesso, sensatez, sensibilidade e também saudade.

Que tenhas também sempre saudades nossas.

Porque a saudade faz parte de nós e ninguém a sente ou descreve como nós, neste sofrimento que confere misericórdia e compaixão.

A saudade dói mas é uma coisa boa.

domingo, 27 de dezembro de 2020

#087 Preciso de escrever como preciso de respirar

Escrever é, para mim, uma necessidade. Um prazer também mas, sobretudo, uma necessidade. Preciso de escrever para encontrar o meu equilíbrio, de tempos a tempos. A escrita acalma-me, recentra-me, expele as coisas más, pacifica-me, traz-me de volta a um espaço e a um tempo em que consigo contemplar a vida que acontece a todos os milissegundos, em todos os pontos do nosso planeta e - dizem agora com novas provas que parecem querer entrar na ordem do dia - noutros pontos do universo.

Se associar o ato da escrita ao gosto de me deixar imbuir em músicas melódicas, então a magia pode acontecer: nessas alturas consigo criar narrativas e contextos que comportam alguma plenitude ou, pelo menos, a isso me habilito. Talvez seja o meu pequeno nirvana terreno.

Nestes dias tenho andado num complexo de paradoxos, num novelo de questionamentos, numa malha intrincada de pensamentos difusos, por vezes erráticos, quase nunca lineares e raramente conclusivos. Episódios e memórias antigas regressam ao momento contemporâneo, ressuscitando fenómenos que deveriam estar arrumados na gaveta das memórias mas que, pelos vistos, ainda vagueiam pelo presente; e podem ameaçar o futuro. Misturam-se com as memórias e experiências recentes, num processo de fusão que não promove a harmonia e não me tranquiliza. Irrito-me, tenho flutuações de humor, modificações súbitas de estados alma, picos de adrelanina compassados com tristeza profunda, dor, mágoa, revolta e dor.

Tal como todos os seres cognoscentes, também eu quero saber mais, saber tudo, saber a causa e a origem de muitas coisas, saber mais porque nos comportamos como comportamos e porque reagimos como reagimos, por vezes sem controlo da situação.


Não me orgulho de tudo o que fiz no meu passado, em muitos domínios mas, talvez pela macieza e brandura que as mais de cinco décadas de vida me trouxeram, encontro-me hoje numa situação de poder conhecer-me melhor que nunca e de desejar paz, serenidade, tranquilidade, afetos, conhecer mais e novos mundos, saborear a energia que ainda fervilha em mim, continuar a manter domesticada ou adormecida a besta que há em mim. Porque assim faz sentido. Estou disponível, dispo-me perante mim e exponho-me nesta nudez perante o outro. Nem sempre sou fácil de entender, não sendo possível a todas as pessoas prescrutar em mim a forma como me sinto e ajudar-me a corrigir atitudes. E é neste círculo vicioso - que eu queria, ao invés, virtuoso - que dou por mim na solidão de pensamentos tristes e em abundantes estados de choro solitário, silencioso, invisível, impercetível, abandonado.

Quero a partilha da vida, a partilha das alegrias e das tristezas, dos prazeres e das dores. Gostava que me pudessem ler na antecipação do que vou querer e, ainda que isso não seja possível, que seja possível ser lido, compreendido, aceite e amado como sou, no pleno decurso dos episódios da vida, que decorrem e discorrem celeremente, fazendo-nos recordar que a finitude da vida implica a necessidade de dela desfrutarmos no dia a dia.

Sinto falta da espontaneidade de um gesto que carinho que me seja dirigido por quem o deveria fazer. Sinto falta da meiguice com que fui criado e com a qual fui crescendo, num mundo imperfeito mas onde os afetos sempre ocuparam lugar central, quase banal, na vida que sempre conheci.

Podemos dar mais do que recebemos. Mas sempre e para sempre? Durante quanto tempo? Qual é o limite? Onde fica a fronteira a partir da qual paramos a nossa dádiva porque estamos no limbo de entrar em território estrangeiro, sem passaporte nem conhecimento das regras e leis desse campo novo e estranho por onde temos receio de caminhar?

Chega uma altura na vida das pessoas em que temos de tomar decisões. Não são todas fáceis, algumas comportam dor até mesmo a nossa dor, para além da que, potencialmente, podemos causar nos outros. Mas nem sempre as decisões podem ser fundadas em altruísmo e em colocar os outros em primeiro lugar. Por necessidades talvez de sobrevivência, precisamos de fazer o esforço de sair do estado emocional, ser mais racional e até egoísta. Chega um momento em que questionamos seriamente se queremos dar o passo seguinte ou se ainda vamos a tempo de evitar sofrimentos maiores no futuro.

Uma pessoa espera, espera, espera... e depois desespera. E é nesse desespero que corre o risco de tomar decisões radicais, porventura nem sempre informadas, nem sempre refletidas, tantas vezes toldadas pelos viezes de quem sente que está em perda relativa, que ama mais do que é amado, que dá mais do que recebe, que estende mais os braços e procura os beijos do que aquilo que recebe. E quando isso sucede dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem sinais de melhoria, a esperança também se acomoda a uma existência imperfeita, incompleta, indesejada.

Amo as coisas simples: um livro, uma música, chocolate preto, o mar, plantas e flores, passear de mão dada, a areia da praia na planta dos pés, um abraço, um pôr-do-sol, um sorriso, uma lágrima de emoção, finais felizes nos filmes, lençóis lavados, um piscar de olhos, um final de tarde ameno num dia de verão, pão quente a sair do forno, segredos murmurados ao ouvido no suor de corpos cansados de se amarem, visitar museus e igrejas, conhecer pessoas novas, conhecer lugares novos, descobrir o que nem sei que existe mas possa proporcionar mais harmonia, ver estrelas cadentes, recordar as memórias do meu pai e da minha avó materna, ter fotografias de pessoas que amo e amei pela casa para nunca me esquecer de como são importantes na minha vida, pintar ainda que sem talento, escrever!


Não sou religioso mas considero-me cada vez mais um ser espiritual. Não sei quem nos deu o "sopro da vida" mas é algo que, para mim, comporta dimensões muito superiores a corpo e mente: tem um mundo de mística, de espiritualidade, de conflito entre o instante e o infinito, de expressão e impressão, de passado, presente e futuro maiores do que a minha finita existência, que recebo e projeto.

A escrita talvez seja o ato mais libertador que encontro para sair de mim e das dores que suporto, para poder regressar sempre ao meu presente e ao instante regenerado. É na escrita que me refugio e todas as demais coisas são apenas acessórios e auxiliares que uso para voltar a equilibrar-me, recentrar-me, a encontrar o caminho e a, se necessário for, desenhar nova rota e mudar de rumo.

Preciso tanto da escrita e ela é tão inerente a mim que corro o risco de dizer que pensar, refletir, escrever e ler são quase tão importantes como o ato de respirar. Inspiro, expiro, integro e expulso, deixo entrar e abro mão, retenho o ar nos pulmões se quiser parar para contemplar com mais intensidade. Não sei se a química pode explcar todos os estados da nossa consciência. Não tenho as bases científicas de António Damásio mas atrevo-me a eplicar pelas minhas próprias palavras, na linguagem que conheço, na forma que me é possível.



Feliz 2021! Estamos quase lá. Nem acredito que dentro deste corpo que talvez complete 53 anos de vida vive a mesma criança, com alguns sonhos ainda do tempo de traquina e as mesmas incertezas e inseguranças sobre a forma de ser feliz e completo.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

#086 É o amor, é o amor.

 Aqui sentado no meu gabinete, de volta das minhas prioridades profissionais, entre prazos e urgências, dou por mim a pensar. Agradeço este emprego, os meus filhos maravilhosos, a fantástica companhia de uma pessoa que me acompanha há mais de uma década e com que sempre sonhei.

Hoje escrevo para ti, diretamente para ti. E para nós, no prolongamento da tua pessoa que se funde na minha e na minha, que se dissolve nas gotas de suor que emergem da nossa união.

Imagino a nossa vida depois "disto".

Mas o que é “isto”? Esta vida, estas opções, estas responsabilidades, estes compromissos: passado, família, mãe, empresa, rotinas.

Hoje estou melancólico, naqueles dias de saudável e doce melancolia, aqueles em que a dose é a suficiente para parar e pensar que também não é esta a vida que quero por muito mais tempo. Sinto cansaço e desgaste e sinto os anos a passarem vertiginosamente, roubando-me e roubando-nos espaço para viver ainda com mais intensidade o nosso amor cúmplice e para crescermos interiormente e como casal.

Mas preciso de mais um tempo, mais um esforço, mais um sacrifico neste momento que já não preenche a totalidade da minha existência. Um tempo que, ainda assim, não me impeça de sonhar, de sorrir, de poder ainda ir a tempo ter vida além desta vida que me aprisiona aqui e que nos mantém cativos neste lugar que não, nunca foi e nunca será, o que possamos chamar de "nossa casa".

Hoje queria estar fechado nessa "nossa casa" abraçadinho a ti, no sofá, entre mantas, na cama, a trocar beijos carícias, a amar. A viver! Viver é isso, não é isto. Desfrutar da casa com que tanto sonhaste e eu, sem nunca fraquezar ou hesitar - e disso me orgulho - estou a ajudar a fazer acontecer. Apenas porque sim, porque faz sentido, porque faz parte da tal outra vida que persigo e perseguimos.

Porque te amo.

Porque estou triste pela ausência forçada de afetos a que nos auto-submetemos, porque o tempo convida a recolhimento, e porque sou assim, este idiota sem remédio que tem a mania que pensa e escreve coisas que alguém entende.

Quem já amou sem reservas e soube despir-se de receios e temeridades - algo difícil nos dias que correm - sabe do que falo e sabo o que escrevo.

Amo-te muito!

segunda-feira, 20 de julho de 2020

#085 As certezas que construímos

O que me leva a escrever sobre o amor apenas com uma semana de intervalo face à anterior reflexão que fiz?
Tu! É tu. Tu ocupas a minha mente, os meus pensamentos, cada vez mais seguros, certos e reveladores de que estamos destinados a caminhar juntos. E isso é bom, muito bom.
Já não fujo a nada, nem a ninguém. Não me importa o que pensam os outros. O pior que me poderiam chamar era vigarista ou desonesto. Isso não sou. Pelo contrário, sou diligente, cumpridor, respeitador, disciplinado, preocupado, voluntarista, solidário. Posso ser sempre melhor e com a tua ajuda poderei ser melhor no futuro. Mas não tenho vergonha de ser como sou e de te amar e querer a meu lado. Para que me ajudes, para que eu te ajude. Porque, juntos, somos uma equipa.
Não estamos sempre bem, por vezes estamos virados do avesso mas não me recordo de teres sido rude ou impróprio para comigo. Como eu procuro também ser justo e carinhoso e respeitador perante ti.

Neste fim de semana que passou, talvez não tenhas dado por isso, mas consolidámos ainda mais o amor que temos vindo a construir. Entrámos numa fase sem complexos, deixamos que mais pessoas lidem com a nossa vida, sem que nela se possam intrometer, mas permitindo que nos observem e vejam quão natural é o amor entre duas pessoas que se complementam.
Estivemos com amigos, com familiares, na cidade, na praia e no campo.
Contigo podia estar até em Marte ou Júpiter. Só o facto de respirares a meu lado, de te beijar a face quando dormes, de me dares a mão sem saberes que o fazes, de ser privilegiado por adormecer e acordar a teu lado, mais do que questões do consumo do corpo e da êxtase que possa existir - e existe - mas só o facto de sentir que me estás emprestado e te estou dado, já faz os meus dias mais felizes.
E é nestas ocasiões que tenho cada vez mais certezas do que somos na vida um do outro.

terça-feira, 14 de julho de 2020

#084 A idade da macieza

Os anos passam e vamos sabendo cada vez melhor quem somos, porque somos quem somos, as razões de sermos como somos, quando e a quem queremos mostrar como somos deixando que nos vejam à transparência.
Com o passar dos anos vem a macieza do carácter, a vida perde a sofreguidão com que antes a devorávamos, os amigos que perduram nas nossas vidas são aqueles que selecionamos ou estavam destinados a fazer parte da nossa "família escolhida"; as coisas são mesmo assim.
Avançamos na vida e olhamos para os fenómenos com outra complacência: libertamo-nos da toxicidade que um dia teremos consentido entrar nas nossas vidas e, aos poucos, libertamos o peso que não queremos carregar para o resto das nossas vidas. Temos menos mas temos melhor, privilegiamos a qualidade sobre a quantidade.
A serenidade que vem com o amadurecimento permite-nos fugir aos lugares-comuns, aceitar melhor as gabarolices tolas de uns e de outros, próprias de imaturidade ou insegurança, mascaradas de falsas certezas, pueris ou prenhas de vaidade. A uns e outros vamos consentindo excessos, só não cedendo nunca na essência dos valores, na ética sobre tudo e na integridade de carácter. Há valores de que não podemos abrir mão mas também há comportamentos que passamos a aceitar e que, na idade mais viçosa não admitiríamos que nos interpelassem.
Quando caminhamos para o ocaso da vida, mesmo que ainda longe do descanso permanente, ficamos com mestria na separação das águas, sabemos bem o que é trigo e o que é joio, distinguimos melhor o benigno face ao maligno, distinguimos com mais clareza o que nos faz bem face ao que nos magoa e cria desconforto.
Aprendemos a viver com autenticidade, a amar quem vale a pena amar, a consagrar a nossa vida a quem nos merece essa consagração. Apenas porque sim, sem cobrança. Amar passa a ser um ato, ao mesmo tempo egoista e de desprendimento. Amamos porque precisamos de amar, mas sabemos que nada nem ninguém é nosso para sempre - é-nos emprestado tanto quanto nós nos emprestamos, mesmo que torcendo que possa ser "para sempre e mais ainda"...
Cheguei àquela idade em que choro a ouvir uma música, a ler um livro, a ver um filme, a contemplar uma paisagem ou a recordar um episódio do passado. Emociono-me a imaginar-me noutro lugar, na companhia especial da pessoa que amo, sem tabus, sem quês nem porquês, apenas porque sim, apenas porque faz sentido. Para mim faz todo o sentido, mesmo que para muitos possa criar estranha rudeza.

Projeto os meus e os teus sonhos, os nossos sonhos; e mesmo que não saiba bem onde, nem como, ou mesmo em que estado e quando vamos lá chegar, imagino-nos velhinhos a apreciar o investimento que agora fazemos em nós, no nosso futuro, nesse lugar onde resgatamos o nosso passado e as memórias que outros, antes de nós, construiram no lugar e na casa a que chamaremos nossa. Imagino-me a constatar que o empréstimo que te fiz de mim e que me fizeste de ti acabem como aqueles livros que emprestamos e que, com o passar dos anos, passam a ser propriedade dos outros e já não nossa.
Projeto o futuro e, fechando os olhos, consigo imaginar um dia perfeito, a ouvir música, a receber amigos, familiares, a pintar ou a ler, a escrever ou a ouvir música, a cozinhar ou a tratar das flores em redor da nossa casa, perfumada de hortênsias e azáleas e lírios e rosas e jarros.
Imagino a quietude dos verões mansos e a severidade dos invernos chuvosos e ventosos na ilha que é tua e já, também de certa forma, minha por adoção. Não sei se fui eu quem adotou a ilha ou ela a mim. Sei que em todos esses momentos nos vejo, juntos, a envelhecer lentamente, porque é lentamente que o devemos fazer, a lidar com a velhice que um dia acabará por nos levar para outra parte, imaterial, ficando aqui, neste pedaço do uinverso, a memória de que existimos e de que nos amámos.
Obrigado pela oportunidade que me concedes, todos os dias, de ser feliz e de reaprender a viver sem máscaras, neste exercício de respeito e muitos afetos polvilhados com a racionalidade que a vida exige sempre. Tenho um segredo: possuo a felicidade ao alcance da mão, sou feliz contigo, numa jornada nossa, mesmo que não tenham todos de saber quem és e quão importante és.
Basta que quem está perto de nós o saiba e seja testemunha da nossa existência.
Talvez esteja a ficar lamechas demais, ou então é mesmo apenas e só a macieza que veio com a idade.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

083# Gestão de Expetativas e o Amor que nos consome

Nunca o tinha compreendido na plenitude. Nunca. Ainda nunca tinha compreendido porque é que é tão verdadeiro o axioma que refere que "quem não sabe gerir expetativas sobre a vida, não consegue ser feliz". Ouvia, repetia mas não compreendia na totalidade, se calhar por nunca ter refletido amadurecidamente sobre o assunto.
Nunca antes e nunca mesmo até ter concluído (se é que isso alguma vez sucede?!?) este processo de aprendizagem, o qual requer resiliência, rigor, aceitação, auto-comiseração, auto-elogio, autoscopia equilibrada sobre as forças, fraquezas, defeitos e ameaças, também sobre os nossos próprios traços de personalidade mais vincados, sobre a generosidade e a dimensão da vida, olhando para os atributos de abnegação e abstração, de reflexão e pensamento, de crítica e auto-crítica, de apelo ao ego e desprendimento pelo orgulho, tudo paradoxos e paralelos, ora simples, ora complexos, mas todos eles necessários para um conhecimento mais pleno sobre o "eu" e os "outros", o "in" e o "out".
A nossa personalidade (também a identidade) depende de diversos fatores: da nossa biologia, da nossa educação, da sociedade em que crescemos e na qual nos formamos, da nossa família com as inerentes interações, da complexidade da rede de relações com os outros, das competências adquiridas ao longo da vida, seja em sistema de ensino, seja no meio profissional e social, dos momentos de fruição, até da solidão e da companhia, do riso e das lágrimas, do prazer e da dor. Mas, agora o sei, eu posso influenciar o rumo da minha vida, eu posso ser o agente mais decisivo na gestão do meu equilíbrio, eu consigo ser dono de muito do que é o meu presente e da construção do meu futuro. Faço-o, ou posso fazê-lo, pelas minhas convicções, pelas minhas escolhas, pelas minhas atitudes, pelas minhas experiências de sucesso e de erro, pela minha auto-crítica.
Quando temos expetativas altas e elas não se concretizam, surge a desilusão. Se, pelo contrário, nada esperarmos ou esperarmos pouco do mundo que nos rodeia, do nosso exterior e, de repente, algo de bom nos aparece no quotidiano, interrompendo as rotinas e a bonomia própria da zona de conforto que criamos e onde nos aburguesamos, mesmo que seja quase insignificante, sentimos felicidade, realização, contentamento e até, em certos casos, plenitude.
Quer isto dizer que o ser humano consegue viver sem gerar e gerir expetativas? Não, de todo. Quem não as gera também não sei se vive ou se apenas sobrevive.
Ter sonhos, ter projetos, ter esperança, ter expetativas de algo que ainda não aconteceu e desejamos para nós e para os nossos, faz parte da vida do ser humano, diria mesmo que é inerente à condição de sermos pessoas.

Mas aprender a gerar e a gerir expetativas é crucial. É necessário. É fundamental. Temos desilusões porque antes tivémos ilusões. Temos de aprender a viver menos iludidos e com os pés mais na terra, sonhando sim, imaginando um futuro risonho, saudável e longo, mas em que nós sejamos o motivo mais importante de nos auto-inspirarmos. Temos de contar com o apoio dos outros, mesmo que seja um "outro especial" mas, acima de tudo, nós contamos connosco. Nascemos sozinhos e morremos sozinhos. É este o nosso fado. Pelo meio juntamos pessoas e episódios, e experiências, cores, sabores, aromas, nuances relevantes mas não são parte de nós - são complementares à nossa existência e à nossa vida.
A vida é um mistério.
A vida é uma dádiva.
A vida é uma odisseia.
A vida pode ser deliciosa.
A vida é um percurso de constante aprendizagem. Nunca cessamos de obter lições de vida que a vida nos oferece. Por vezes com dor produnda, agonia, sofrimento, perda. Nem sempre, contudo.
Quando te conheci criei elevadas expetativas. Eras o meu "novo mundo", um universo de possibilidades, exponenciadas por potências que as galáxias até nunca conheceram, num apogeu de sonhos idílicos e vida eterna repleta de magia, encantamento, felicidade, alegria, prazer de viver, prazer como nunca até então algum ser humano pudesse ter sentido. Quis dar-me. E dei-me, dei-me até quase me diluir, até quase deixar de ser eu o mais importante na minha vida. Dei-me como me dou aos meus filhos, pelos quais dou a minha vida, de tal for necessário.
Esperei de ti tanto como estava disposto a dar. E dei até sem esperar porque dar era o que fazia sentido, porque sempre acredtei que quem ama não nega esforços e não regateia afetos, mesmo que lá no fundo estejamos sempre todos na esperança de reciprocidade.
E esperei, esperei, esperei, continuei a esperar e até desesperei em certos momentos de desnorte e ausência de satisfação com o rumo da nossa relação. Não foi fácil esperar sempre pelo mimo extra que não chegava, a espontaneidade do "amo-te" que não surgia e só surgiu muito tempo depois, vagamente repetido, em espaçamento temporal que magoava.
Senti dor, senti aperto, senti desamor até.
Nasceram em mim, talvez infantilmente, as suspeitas de um amor não correspondido, de estarmos juntos porque eu era o melhor que, na altura, podias ter, mas sem nunca te entregares por completo, sem nunca eu te sentir meu na plenitude, sem nunca me encheres de motivos para não ter motivos distintos de receio, suspeições de perda, sensação de não-exclusividade na tua vida.
Senti o chão fugir-me de debaixo dos pés e questionei-me sobre os motivos de querer continuar a persistir, neste registo de amor resiliente e de luta pela felicidade, a teu lado.
Fiz asneiras pelo meio, fraquejei, cometi disparates, quis amar-te menos e, para isso, tive de preencher a vida com outros interesses e outros momentos.
A vida corre, contudo, sempre, imparável, o seu curso. E serenei. E tentei compreender a vida, compreender-te, compreender-me.
E cheguei a esse ponto de ter a certeza do meu amor por ti, não por ti mas sim por mim. E percebendo quão complemenares podes ser na minha vida - e eu na tua - sem que volte a criar falsas e exageradas expetativas sobre o "nós", sobre o 1+1 sermos 1. Não, seremos sempre 2 e isso é perfeitamente normal.
Nesse processo refleti incontáveis vezes sobre as expetativas, concluindo que talvez as tenha colocado, erradamente, por infantilidade ou pueril generosidade excessiva, muito elevadas. Mas como poderia não o ter feito se tu eras o mundo que eu sempre tinha querido encontrar ou descobrir, e agora estavas ali à minha mercê e tudo o que tinhas de fazer era amares-me na mesma medida em que eu já te amava? Parecia-me tão simples. Tudo fazia sentido porque eu queria que tu fosses como eu sonhava que serias.
A vida não é como a desenhamos, é como nos surge, como ela quer, ou como ela pode ser. As circunstâncias ditam muito sobre a vida, o seu rumo, o destino onde chegamos e o caminho que fazemos até ao ponto de chegada - que é o ponto final, o do último suspiro vital.
Somos o nosso ser e a nossa circunstância, já o dizia Ortega y Gasset.
E a tua circunstância era a existência de um amor maior antes do meu. Um amor vivo numa relação terminada, com cicatrizes marcadas e que ainda hoje sinto existirem. Já são quase invisíveis mas, num zoom ao detalhe, elas estão lá. Vives sem lhes dar atenção e encontraste um "novo normal", uma nova zona de conforto, mas não há forma de as eliminar. São as marcas do teu passado.
Eu não sei, nunca o saberei. Mas haverá razões para não saberes, não conseguires ou pretenderes ser o homem doce e generoso que estavas destinado a ser ao teu anterior amor.
Talvez quando nascemos sejamos creditados com o nosso saldo de afetos e mimos e atenções, e palavras doces e surpresas para o outro, talvez...
Uns terão um crédito maior, e outros menor. Mas todos seremos creditados com um saldo, quero eu acreditar. E tu escolheste gastar esse saldo no amor maior, aquele que veio antes de mim. E eu poderia sentir-me mal com isso, e senti no passado. Mas já não sinto. Porque não me sinto inferior em nada e, para além disos, tu não tens culpa de teres tido um amor maior do que o meu antes de eu ter surgido na tua vida, em momento quase simultâneo, no espaço e no tempo, com a dissipação desse amor, ainda por cima, uma rotura que tu nunca desejaste e com a qual nunca sequer sonhaste, pois se até te mudaste fisicamente para a capital para poderes ser feliz com esse teu amor... que não te quis, no final.
Não se pode competir com um fantasma.
Tive de me abstrair de tudo o que me afetava e de reposicionar as minhas expetativas.
Então, só então, percebi que o problema estava em mim. Na dor que sentia nas alturas em que me identificava como tua segunda escolha, no quanto queria que me amasses tal como tinha planeado, no quanto queria ser correspondido na exata forma em que eu doentiamente te amava e dependia de ti, na forma como não valorizavas o facto de me ter dado por inteiro e ter-te consagrado todo este amor. E ainda amo, amo de verdade, com maturidade, com serenidade, sem luta interior, sem necessidade de cobrar, sem medo de dar mais do que recebo, se isso acontecer esporádica ou continuadamente. Isso já não importa, já não estou em competição com nada, nem com ninguém, nem sequer com o fantasma do teu anterior amor, nem tão pouco com os meus devaneios de compensação de afetos. Aprendi a conhecer-te e ajustei as minhas expetativas.
Hoje não espero mais de ti do que aquilo que sinto que me podes dar. Não espero. E não me queixo. Encontrei na escrita, na leitura, na música, no exercicio fisico e até na pintura os momentos de reequilíbrio emocional que me permitem continuar lúcido. E aprendi a gerir, até a gerar em certa medida, as minhas expetativas contigo. Continuo feliz porque espero menos. Se calhar até estou a conseguir ser mais feliz e estou confortável. Se não estivesse, ou se um dia vier a não estar, ou se surgir inesperadamente algo ou alguém que me faça estremecer como estremeci quando te beijei pela primeira vez, quero acreditar que estou preparado para resistir.
Uma coisa boa que as expetativas baixas também provocam, inevitavelmente, é o maior desprendimento. Sei que não és minha propriedade, que não posso reivindicar o que nunca foi meu, que não posso exigir receber o que gostaria de poder receber.
E sei que isso é válido para ambos.

Como na primeira vez em que entraste num navio de cruzeiro e ficaste alojado num quarto que preencheu e até excedeu as expetativas, adoraste a experiência e a vista de mar que tinhas, assim são as relações. Numa segunda viagem, o quarto até podia ser mais espaçoso mas tu tinhas adorado era o primeiro e a vista que tinhas lá dentro, com a companhia que estava lá contigo.
Aos poucos foste criando o hábito e as rotinas no novo quarto, com a nova companhia mas, de vez em quando, a saudade e a nostalgia remete-te para o primeiro quarto, aquele que será para sempre o primeiro e especial.
E gerir expetativas e saber viver bem no contexto da vida dos afetos é saber compreender e aceitar tudo isto.
E aceitar que, de vez em quando, temos de ajustar a forma como estamos inseridos no mundo e agimos nele.
E é por ter sido capaz de chegar a este estadio, de forma lúcida e consciente, que hoje me sinto mais feliz e mais completo.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

#082 Registos soltos sobre o tempo e o espaço

Já perdi a conta exata aos dias que passaram.
Passaram, é passado, não se fala mais nessa perda. Já sei que o Universo não nos vai devolver estes dias que subtraímos a uma existência normal, entre convívios com amigos, abraços aos familiares, idas a restaurates, à praia, ao cinema, aos museus, a um bar, a um concerto ou a um espetáculo de artes performativas, de entre as muitas modalidades e opções que teríamos e que nos levariam a tomar uma decisão de seleção e prioritização.
Agora, nestes dias, qualquer evento "fora do cardápio" do confinamento, e do isolamento, e da distância social, e da proteção individual e coletiva, e da monitorização do chamado R0 - de cuja evolução todos ficámos, de repente, admiradores, além de nos considerarmos especialistas de Covid, como os treinadores de bancada o são em relação ao futebol - e da mania de acharmos que estamos a vencer e ao mesmo tempo com medo de sermos infetados.
Este tempo que perdemos neste período da história em que fomos forçados a travar o ritmo e a reinventar a nossa existência como pessoas e como profissionais, com novos hábitos que já não serão erradicados do nosso "novo normal", este tempo ficou lá para trás. Os 30 segundos que vamos viver a seguir serão passado daqui a terem transcorridos os mesmos 30 segundos. Serão, também eles, passado. 
Seria bom que pudéssemos ser compensados por este período de vida em suspenso, de permanência entre um limbo existência e o prenúncio de um purgatório, sendo o calvário este pesaroso pesadelo real do qual ainda não conseguimos acordar.
Os dias vão ficar, em breve, mais quentes. Vamos querer fazer o que antes fazíamos, sem atribuir a isso o valor que hoje conferimos à banalidade rotineira que exisia a.C.. Não, não é antes de Cristo, é antes de Covid.
Quando temos de sair de casa, para irmos satisfazer uma qualquer necessidade objetiva, todos nos observamos mutuamente. Vemos, imaginamos, tecemos considerações para nós. Vemos quem se protege e quem é mais negligente nesse cuidado - ou na falta dele. Há pessoas que, só para se armarem em fortes e mostrarem que nada temem (ou aparentemente nada temem), cometem a estupidez imprudente de desrespeitar as recomendações de proteção, sua e dos outros.
Os comportamentos cívicos sempre e foram  e serão matéria-prima para muitas teses e para procurar a sua compreensão. Mas não há muito para compreender. Infelizmente, nem para modificar, porque as pessoas serão sempre pessoas e não se muda a essência do ser humano assim por truque de magia, nem pela sabedoria livresca dos manuais de auto-ajuda e de conteúdos mais esotéricos.
Enquanto perco a conta aos dias que já passaram procuro não perder a lucidez sobre os objetivos de vida, num horizonte mais mediato. E continuo a sonhar e a projetar esses sonhos em materialidade futura, num processo de construção que se alimenta de esperança e entusiasmo.
É nisso que acredito, é isso que procuro praticar.
Mesmo que o Universo não me devolva nunca mais estes dias, o que me obriga a viver os vindouros com mais intensidade ainda.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

#081 Exaltação dos afetos

Hoje apetece-me escrever sobre a exaltação dos afetos que a situação pandémica do coronavirus me proporcionou.
Com a vertigem dos dias que antes corriam velozes e cheios de afazeres e prioridades, igualmente repletos de fatores de desatenção, sem darmos por isso estávamos a ver o filme da nossa vida com um tremendo viés, eivado de perspetiva unilateral e sempre a partir do nosso ponto, fixo, pouco movível e quase nada flexível.

Não estarei a traduzir a realidade de toda a Humanidade mas não deixará de ser verdade para muitos.
Esta paragem, este confinamento, este isolamento, esta ausência da vida frenética anterior, tudo isto e muito mais que não cabe aqui, trouxe-me (trouxe-nos?) uma diferente disponibilidade para sentir o pulsar da vida. Damos mais valor a pequenos-nadas que já cá estavam mas que apenas negligenciávamos porque assim consentíamos e até gostávamos que assim fosse, lá no fundo.
Por exemplo, o amor da pessoa ou das pessoas que nos amam e que nós amamos. Passamos a olhar para essas pessoas (ou essa pessoa) com um sentido de cuidar diferente, mais consciente de que somos o respaldo uns dos outros (ou um do outro). Os defeitos foram sublimados, as virtudes surgem agora prenhas de significado e significância.
E o que antes parecia ter a sua dose de irreverência e aventureirismo foi passando e já se perde na penumbra do ocaso dos dias da vida.
Muitas vezes quis "vestir a pele" dos outros, gostei de imaginar a vida dos outros, desejei até sentir a sua felicidade e, no meio de todo este turbilhão, terei dado por adquirida a felicidade e completude da vida dos outros. Errei muito e errei em grande. Não me orgulho de tudo o que fiz, nem me penitencio mais. Porque eu acreditava que aquilo em que acreditava era verdade. Acreditem. Lutei pela minha felicidade cobiçando a que imaginava existir na vida dos outros.
E, no entanto, ela pode ter estado sempre aqui. E agora sei que estava e ei-la, imponente que surge, majestática que se impõe.

Se não sabemos quem somos e não sabemos estar em paz connosco, com os nossos defeitos, com as nossas imperfeições, com as nossas frustrações e sucessos também, bem como com as pessoas que nos fazem sentir bem e nos dão o melhor que têm, então nunca saberemos encontrar o nosso caminho de felicidade. Nem sozinhos, nem com mais ninguém.
Dei por mim a pensar em tudo isto nestes dias. E acabei a sentir, com profunda consciência do que tenho, do que sou, do que quero e do espero viver, que tenho a felicidade de ter a meu lado a pessoa mais extraordinária que existe. Tenho mais pessoas extraordinárias na minha vida. E tenho também sabido expelir dela personalidades toxicas. E sou privilegiado por também ter sido brindado com filhos sábios, amigos e compreensivos, e ainda família e amigos que gostam de mim como sou, mesmo que não compreendam tudo. E não têm de comprender tudo, não têm de aceitar tudo, como não têm ou não devem lutar contra tudo o que são as minhas crenças, convicções, certezas, apostas e expetativas. Basta que me respeitem para que também eu os possa respeitar.
E porque no meio de tudo isto me apetece amar ainda com mais intensidade, num registo de cada vez mais serenidade e mansidão sobre a sofreguidão com que antes absorvia tudo o que sentisse poder ser novo e giro e arriscado, e até ridículo e esdrúxulo e patético, assim irei fazer.
Quero fazer o caminho que falta percorrer até ao final lado a lado contigo. Com a nossa graça, a nossa cumplicidade, mas também com os nossos defeitos e imperfeições, porque só assim faz sentido.
A ti fica o meu compromisso: amo-te ainda mais. Amo-te ainda melhor. Amo-te ainda mais além.

domingo, 5 de abril de 2020

#080 O mundo como eu o quero ver, pós-coronavirus

Uma folha em branco, um desafio. Começo sempre por uma folha em branco. Olho para ela e a sua brancura desafia-me, pela odisseia do que me espera - em parte - e pela pureza do espaço branco em frente - a outra parte.
Hoje em dia a página de papel foi substituída por uma outra, do computador, que replica a primeira, mantendo a mesma brancura.
Esta cândida existência vazia, branca, é a mesma que me relata e recorda que, outrora, fomos todos puros, imaculados, limpos, inocentes. E que teremos começado a deixar de o ser no exato momento em que contactámos com o mundo exterior, ao qual chegámos sem que tal tenha sido uma escolha nossa. Mas aceitámos essa condição e lá nos fomos criando e interagindo uns com os outros e com a sociedade, que nos formatou e que muito pouco, cada um de nós, sozinho, conseguiu mudar.
Foi com a virgindade de atitude e ética dos valores que, sem sabermos, nas fases iniciais da nossa vida fomos formatando a nossa caminhada inicial na vida, contrastando agora com o peso do alcatrão que os nossos pés já percorreram e com a voragem dos afetos que comercializámos no "mercado dos amores".
Podemos voltar atrás? Não!
Devemos ansiar que o futuro chegue depressa? Julgo que não, ou não tenho a certeza. Nesta altura de pandemia de coronavírus, que transformou o planeta num pandemónio, ansiar demasiado depressa pelo futuro é também, sem o querermos de modo consciente, caminhar mais depressa para o nosso fim, mesmo que superemos incólumes este momento difícil.
O modelo de sociedade em que nascemos e crescemos foi alvo de um terramoto. Há quem fale em tsunami mas este surge depois de um terramoto lá longe, que afeta a estabilidade das placas fundacionais do planeta. E assim foi e é com o momento atual.
Num ensaio estonteantemente lúcido Jorge Almeida Fernandes escrevia ontem no jornal "Público" que "as pandemias raramente mudam o curso da História. Aceleram e revelam tendências que já estavam em curso, aberta ou subterraneamente".
E, recorrendo ainda a Gideon Lichfield, importa fazer um sublinhado de que concordo com o mesmo quando este refere que "a maior parte de nós ainda não terá compreendido, mas depressa o fará, que as coisas não voltarão a ser normais após algumas semanas ou até alguns meses. E algumas coisas jamais o voltarão a ser".
O que está em causa é um desafio civilizacional que não antevimos, não desejámos e ao qual ainda não sabemos como vamos fazer o ajustamento. A Humanidade sempre se ajustou após as grandes crises e os grandes desafios. Depois de apuradas as "war casualties" o mundo seguirá o seu novo rumo e um "novo normal" irá impor-se, majestático, nas nossas vidas. Há quase 20 anos, depois do 11 de Setembro, o mundo mudou um pouco. Por exemplo, estranhámos as novas regras de circulação aérea e os procedimentos mais rígidos de fiscalização nos aeroportos. Hoje isso é o "novo normal". Com uma magnitude seguramente superior, muito do que fazíamos até há um mês atrás mudou.
Como refere Yuval Noah Harari, num artigo publicado no Finantial Times e que a revista "E" do Expresso traduziu este fim de semana, "a Humanidade está neste momento a enfrentar uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões que as pessoas e os Governos tomarem  nas próximas semanas vão provavelmente moldar o mundo durante anos. Moldarão não só os nossos sistemas de saúde mas também a economia, a política e a cultura. Devemos agir rápida e decisivamente". No registo impactante que lhe conhecemos, revelado pela leitura da sua obra de atenta e rigorosa análise sociológica Harari vai mais longe e atreve-se a antever que "muitas medidas de emergência a curto prazo tornar-se-ão um aspeto da vida. Essa é a natureza das emergências. Aceleram processos históricos. Decisões que em épocas normais poderiam levar anos de deliberação são aprovadas em algumas horas".
Não tenho, pessoalmente, muitas dúvidas, de que assim será. Na reorganização da forma de trabalhar, dos sistemas de ensino, na partilha de informação - agora voluntária mas com riscos de nos estarmos a entregar ao controlo total por via dos smartphones e computadores e biometria e algoritmos preditivos e outras coisas que ainda não sabemos como serão mas que aí virão - sobre dados pessoais para nos ajudar na saúde e na doença, na organização dos processos de produção industrial, na forma como acedemos a atos culturais e eventos desportivos ou lúdicos, em tudo isso - e muito mais! - o mundo vai mudar e essa mudança não decorre de qualquer processo de transformação ou reforma empreendida pelos governos e sufragada nas urnas. Decorre porque estamos em emergência, porque há medo, porque queremos vencer esta ameaça e outras que - não tenho disso dúvida - no futuro nos surgirão.
Há uns anos recordo-me de haver uma luta contra o projeto Echelon e o medo do Big Brother que nos iria vigiar. Ao pé do que está a suceder isso era uma brincadeira de meninos.
Por outro lado, é também o tempo de a maioria dos povos e países do Mundo exigir que os focos de novas epidemias e novos vírus e ameaças biológicas parem de emergir na mesma geografia, por razões já identificadas e que não se compadecem com o sentido de responsabilidade coletivo que a Humanidade merece. E assegurar que essa mudança de comportamento cultural, neste caso com origem na China e nos mercados de animais selvagens vivos, deixe de ser possível.
Se há uma "coisa boa" que o novo coronavírus trouxe foi o momento de pausa para reflexão enquanto a ação não surge ou surge tímida e lentamente. Recebemos recomendações, orientações, umas mais rigorosas, outras menos, por vezes até contraditórias (a questão do uso versus não uso generalizado de máscaras, por exemplo) mas, no fundo, recebemos um convite a uma mudança de paradigma na civilização, um convite a uma nova forma de cidadania, um pedido a um regresso à pureza dos afetos e à nostalgia com que abraçávamos e beijávamos, sem medo nem real valor, aqueles que nos são mais importantes e mais falta fazem nas nossas vidas.
A emergência de novos padrões de comportamento virá com as novas regras de vivência em comunidade, associadas ainda a novas formas de solidariedade global, de rompimento com alguns processos de isolamento nacionalista, porventura até de uma nova forma regulação da multiculturalidade, onde desejo que seja possível caminhar no sentido da multidiversidade, no esbatimento de diferenças étnicas, religiosas e culturais e da generosidade e partilha como acontecia quando tudo estava nos primórdios da civilização humana.
Naturalmente, sempre haverá egoísmo, competição, disputa, inveja e fenómenos contrários ao caminho que a maioria vai desenhar ou aceitar como inevitável, após mais esta crise. Esses são também comportamentos inerentes à condição humana, eivada de bons propósitos mas também dos mais pérfidos atos de ignomínia e ultrajante degradação moral e ética.
Pessoalmente, quero acreditar que a Humanidade vai poder fazer um "reset" do caminho de auto-destruição inevitável em que se encontrava e ser capaz de se reerguer.
Como, quando e com quantos, isso é que ainda não sabemos...