domingo, 27 de dezembro de 2020

#087 Preciso de escrever como preciso de respirar

Escrever é, para mim, uma necessidade. Um prazer também mas, sobretudo, uma necessidade. Preciso de escrever para encontrar o meu equilíbrio, de tempos a tempos. A escrita acalma-me, recentra-me, expele as coisas más, pacifica-me, traz-me de volta a um espaço e a um tempo em que consigo contemplar a vida que acontece a todos os milissegundos, em todos os pontos do nosso planeta e - dizem agora com novas provas que parecem querer entrar na ordem do dia - noutros pontos do universo.

Se associar o ato da escrita ao gosto de me deixar imbuir em músicas melódicas, então a magia pode acontecer: nessas alturas consigo criar narrativas e contextos que comportam alguma plenitude ou, pelo menos, a isso me habilito. Talvez seja o meu pequeno nirvana terreno.

Nestes dias tenho andado num complexo de paradoxos, num novelo de questionamentos, numa malha intrincada de pensamentos difusos, por vezes erráticos, quase nunca lineares e raramente conclusivos. Episódios e memórias antigas regressam ao momento contemporâneo, ressuscitando fenómenos que deveriam estar arrumados na gaveta das memórias mas que, pelos vistos, ainda vagueiam pelo presente; e podem ameaçar o futuro. Misturam-se com as memórias e experiências recentes, num processo de fusão que não promove a harmonia e não me tranquiliza. Irrito-me, tenho flutuações de humor, modificações súbitas de estados alma, picos de adrelanina compassados com tristeza profunda, dor, mágoa, revolta e dor.

Tal como todos os seres cognoscentes, também eu quero saber mais, saber tudo, saber a causa e a origem de muitas coisas, saber mais porque nos comportamos como comportamos e porque reagimos como reagimos, por vezes sem controlo da situação.


Não me orgulho de tudo o que fiz no meu passado, em muitos domínios mas, talvez pela macieza e brandura que as mais de cinco décadas de vida me trouxeram, encontro-me hoje numa situação de poder conhecer-me melhor que nunca e de desejar paz, serenidade, tranquilidade, afetos, conhecer mais e novos mundos, saborear a energia que ainda fervilha em mim, continuar a manter domesticada ou adormecida a besta que há em mim. Porque assim faz sentido. Estou disponível, dispo-me perante mim e exponho-me nesta nudez perante o outro. Nem sempre sou fácil de entender, não sendo possível a todas as pessoas prescrutar em mim a forma como me sinto e ajudar-me a corrigir atitudes. E é neste círculo vicioso - que eu queria, ao invés, virtuoso - que dou por mim na solidão de pensamentos tristes e em abundantes estados de choro solitário, silencioso, invisível, impercetível, abandonado.

Quero a partilha da vida, a partilha das alegrias e das tristezas, dos prazeres e das dores. Gostava que me pudessem ler na antecipação do que vou querer e, ainda que isso não seja possível, que seja possível ser lido, compreendido, aceite e amado como sou, no pleno decurso dos episódios da vida, que decorrem e discorrem celeremente, fazendo-nos recordar que a finitude da vida implica a necessidade de dela desfrutarmos no dia a dia.

Sinto falta da espontaneidade de um gesto que carinho que me seja dirigido por quem o deveria fazer. Sinto falta da meiguice com que fui criado e com a qual fui crescendo, num mundo imperfeito mas onde os afetos sempre ocuparam lugar central, quase banal, na vida que sempre conheci.

Podemos dar mais do que recebemos. Mas sempre e para sempre? Durante quanto tempo? Qual é o limite? Onde fica a fronteira a partir da qual paramos a nossa dádiva porque estamos no limbo de entrar em território estrangeiro, sem passaporte nem conhecimento das regras e leis desse campo novo e estranho por onde temos receio de caminhar?

Chega uma altura na vida das pessoas em que temos de tomar decisões. Não são todas fáceis, algumas comportam dor até mesmo a nossa dor, para além da que, potencialmente, podemos causar nos outros. Mas nem sempre as decisões podem ser fundadas em altruísmo e em colocar os outros em primeiro lugar. Por necessidades talvez de sobrevivência, precisamos de fazer o esforço de sair do estado emocional, ser mais racional e até egoísta. Chega um momento em que questionamos seriamente se queremos dar o passo seguinte ou se ainda vamos a tempo de evitar sofrimentos maiores no futuro.

Uma pessoa espera, espera, espera... e depois desespera. E é nesse desespero que corre o risco de tomar decisões radicais, porventura nem sempre informadas, nem sempre refletidas, tantas vezes toldadas pelos viezes de quem sente que está em perda relativa, que ama mais do que é amado, que dá mais do que recebe, que estende mais os braços e procura os beijos do que aquilo que recebe. E quando isso sucede dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem sinais de melhoria, a esperança também se acomoda a uma existência imperfeita, incompleta, indesejada.

Amo as coisas simples: um livro, uma música, chocolate preto, o mar, plantas e flores, passear de mão dada, a areia da praia na planta dos pés, um abraço, um pôr-do-sol, um sorriso, uma lágrima de emoção, finais felizes nos filmes, lençóis lavados, um piscar de olhos, um final de tarde ameno num dia de verão, pão quente a sair do forno, segredos murmurados ao ouvido no suor de corpos cansados de se amarem, visitar museus e igrejas, conhecer pessoas novas, conhecer lugares novos, descobrir o que nem sei que existe mas possa proporcionar mais harmonia, ver estrelas cadentes, recordar as memórias do meu pai e da minha avó materna, ter fotografias de pessoas que amo e amei pela casa para nunca me esquecer de como são importantes na minha vida, pintar ainda que sem talento, escrever!


Não sou religioso mas considero-me cada vez mais um ser espiritual. Não sei quem nos deu o "sopro da vida" mas é algo que, para mim, comporta dimensões muito superiores a corpo e mente: tem um mundo de mística, de espiritualidade, de conflito entre o instante e o infinito, de expressão e impressão, de passado, presente e futuro maiores do que a minha finita existência, que recebo e projeto.

A escrita talvez seja o ato mais libertador que encontro para sair de mim e das dores que suporto, para poder regressar sempre ao meu presente e ao instante regenerado. É na escrita que me refugio e todas as demais coisas são apenas acessórios e auxiliares que uso para voltar a equilibrar-me, recentrar-me, a encontrar o caminho e a, se necessário for, desenhar nova rota e mudar de rumo.

Preciso tanto da escrita e ela é tão inerente a mim que corro o risco de dizer que pensar, refletir, escrever e ler são quase tão importantes como o ato de respirar. Inspiro, expiro, integro e expulso, deixo entrar e abro mão, retenho o ar nos pulmões se quiser parar para contemplar com mais intensidade. Não sei se a química pode explcar todos os estados da nossa consciência. Não tenho as bases científicas de António Damásio mas atrevo-me a eplicar pelas minhas próprias palavras, na linguagem que conheço, na forma que me é possível.



Feliz 2021! Estamos quase lá. Nem acredito que dentro deste corpo que talvez complete 53 anos de vida vive a mesma criança, com alguns sonhos ainda do tempo de traquina e as mesmas incertezas e inseguranças sobre a forma de ser feliz e completo.

Sem comentários: