terça-feira, 14 de julho de 2020

#084 A idade da macieza

Os anos passam e vamos sabendo cada vez melhor quem somos, porque somos quem somos, as razões de sermos como somos, quando e a quem queremos mostrar como somos deixando que nos vejam à transparência.
Com o passar dos anos vem a macieza do carácter, a vida perde a sofreguidão com que antes a devorávamos, os amigos que perduram nas nossas vidas são aqueles que selecionamos ou estavam destinados a fazer parte da nossa "família escolhida"; as coisas são mesmo assim.
Avançamos na vida e olhamos para os fenómenos com outra complacência: libertamo-nos da toxicidade que um dia teremos consentido entrar nas nossas vidas e, aos poucos, libertamos o peso que não queremos carregar para o resto das nossas vidas. Temos menos mas temos melhor, privilegiamos a qualidade sobre a quantidade.
A serenidade que vem com o amadurecimento permite-nos fugir aos lugares-comuns, aceitar melhor as gabarolices tolas de uns e de outros, próprias de imaturidade ou insegurança, mascaradas de falsas certezas, pueris ou prenhas de vaidade. A uns e outros vamos consentindo excessos, só não cedendo nunca na essência dos valores, na ética sobre tudo e na integridade de carácter. Há valores de que não podemos abrir mão mas também há comportamentos que passamos a aceitar e que, na idade mais viçosa não admitiríamos que nos interpelassem.
Quando caminhamos para o ocaso da vida, mesmo que ainda longe do descanso permanente, ficamos com mestria na separação das águas, sabemos bem o que é trigo e o que é joio, distinguimos melhor o benigno face ao maligno, distinguimos com mais clareza o que nos faz bem face ao que nos magoa e cria desconforto.
Aprendemos a viver com autenticidade, a amar quem vale a pena amar, a consagrar a nossa vida a quem nos merece essa consagração. Apenas porque sim, sem cobrança. Amar passa a ser um ato, ao mesmo tempo egoista e de desprendimento. Amamos porque precisamos de amar, mas sabemos que nada nem ninguém é nosso para sempre - é-nos emprestado tanto quanto nós nos emprestamos, mesmo que torcendo que possa ser "para sempre e mais ainda"...
Cheguei àquela idade em que choro a ouvir uma música, a ler um livro, a ver um filme, a contemplar uma paisagem ou a recordar um episódio do passado. Emociono-me a imaginar-me noutro lugar, na companhia especial da pessoa que amo, sem tabus, sem quês nem porquês, apenas porque sim, apenas porque faz sentido. Para mim faz todo o sentido, mesmo que para muitos possa criar estranha rudeza.

Projeto os meus e os teus sonhos, os nossos sonhos; e mesmo que não saiba bem onde, nem como, ou mesmo em que estado e quando vamos lá chegar, imagino-nos velhinhos a apreciar o investimento que agora fazemos em nós, no nosso futuro, nesse lugar onde resgatamos o nosso passado e as memórias que outros, antes de nós, construiram no lugar e na casa a que chamaremos nossa. Imagino-me a constatar que o empréstimo que te fiz de mim e que me fizeste de ti acabem como aqueles livros que emprestamos e que, com o passar dos anos, passam a ser propriedade dos outros e já não nossa.
Projeto o futuro e, fechando os olhos, consigo imaginar um dia perfeito, a ouvir música, a receber amigos, familiares, a pintar ou a ler, a escrever ou a ouvir música, a cozinhar ou a tratar das flores em redor da nossa casa, perfumada de hortênsias e azáleas e lírios e rosas e jarros.
Imagino a quietude dos verões mansos e a severidade dos invernos chuvosos e ventosos na ilha que é tua e já, também de certa forma, minha por adoção. Não sei se fui eu quem adotou a ilha ou ela a mim. Sei que em todos esses momentos nos vejo, juntos, a envelhecer lentamente, porque é lentamente que o devemos fazer, a lidar com a velhice que um dia acabará por nos levar para outra parte, imaterial, ficando aqui, neste pedaço do uinverso, a memória de que existimos e de que nos amámos.
Obrigado pela oportunidade que me concedes, todos os dias, de ser feliz e de reaprender a viver sem máscaras, neste exercício de respeito e muitos afetos polvilhados com a racionalidade que a vida exige sempre. Tenho um segredo: possuo a felicidade ao alcance da mão, sou feliz contigo, numa jornada nossa, mesmo que não tenham todos de saber quem és e quão importante és.
Basta que quem está perto de nós o saiba e seja testemunha da nossa existência.
Talvez esteja a ficar lamechas demais, ou então é mesmo apenas e só a macieza que veio com a idade.

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